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Autor Tópico: Todos os nomes  (Lida 3162 vezes)
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Tim_booth
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« em: Setembro 02, 2008, 19:20:58 »

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Os vivos podem esperar, os mortos não.
    - José Saramago, Todos os nomes


Chega, finalmente, a vez do único prémio Nobel português ser visitado pelo Livros (s)em critério. Podem perguntar o porquê de a análise começar por um dos livros considerados menores de Saramago em vez de por sucessos como o Memorial do Convento ou o Ensaio sobre a cegueira, a resposta é simples: tenho escrito as críticas por ordem cronológica inversa de leitura, ou seja, do último livro que li, até aos primeiros num espaço máximo de quatro meses. Explicações sobre a escolha à parte, vamos ao que interessa.

Tal como em muitos dos livros de Saramago, em Todos os nomes o personagem principal é um trabalhador de baixo estatuto, um auxiliar de escrita na Conservatória Geral do Registo Civil (tal como no Memorial do convento tínhamos um soldado maneta, na História do cerco de Lisboa um revisor de textos…), o Sr. José. A hierarquia de trabalho na Conservatória é extremamente rigorosa: quem visse de cima a sala de trabalho teria a vista de uma pirâmide formada por secretárias: as oito dos auxiliares de escrita na base, as quatro dos oficiais, as duas dos sub-chefes e a final do conservador, maior e mais imponente que todas as outras. Temos, portanto, o nosso Sr. José na base dos trabalhadores da Conservatória do Registo Civil.

Este é mais um texto de Saramago onde os personagens são despidos de nomes próprios, tal como no Ensaio sobre a cegueira, sendo sempre tratados por perífrases como “a senhora do rés-do-chãoâ€, “a mulher desconhecidaâ€, “o conservadorâ€, à excepção, claro, do Sr. José.

Este Sr. José, que é sempre assim tratado ao longo do livro (talvez para lhe dar a possível dignidade que por vezes o próprio não sente ter), é um funcionário exemplar. Chega sempre a horas, trabalha de manhã à noite, sem uma falta, sem uma doença que se registe, e, como se sabe, se não está registado não existiu. É uma pessoa simples, homem de meia idade que vive num prédio contíguo à Conservatória com uma porta interior de acesso, mas que por ordem do Conservador, deve sempre manter-se fechada, ordem que o Sr. José sempre cumpriu escrupulosamente, como aliás todas as outras ordens, até ao início deste livro.

O Sr. José tem, no entanto, um hobbie peculiar. O seu gosto consiste em guardar todos os recortes de jornais e revistas que conseguir encontrar das cem personalidades mais famosas do país. Nada de especial para um homem que nada de especial tinha, até um dia em que o Sr. José sente-se na obrigação de completar um pouco mais a sua colecção. Nessa altura, decide quebrar, pela primeira vez na sua vida, uma regra. Durante a noite abre a porta interior que lhe dá acesso à Conservatória e vai procurar informações oficiais acerca das suas amadas celebridades. Repete isto durante algumas noites, sempre com o coração nas mãos (o Sr. José é um espírito extremamente frágil, nervoso e medroso), para conseguir completar ao máximo a sua colecção com as informações mais precisas. Numa das noites traz por engano um verbete de uma mulher desconhecida, onde constam dois averbamentos - um de casamento e outro de divórcio.

Esta mulher, sem razão aparente, intriga o Sr. José e lança-o numa busca incessante por mais informações sobre ela, tornando-a assim na sua própria “celebridade pessoalâ€. A partir daqui o simpático Sr. José é posto em aventuras que ele nunca sonharia, corre riscos físicos que quase o matam, apenas para descobrir absolutamente tudo sobre a mulher desconhecida.

Se uma palavra fosse suficiente para descrever este livro, essa palavra seria provavelmente “labirintoâ€. Todo ele está cheio de espaços labirínticos (o arquivo da Conservatória, que é tão grande que todos os funcionários têm de prender um fio à perna antes de entrarem, para que não percam o caminho de retorno; a escola onde as salas são todas iguais; o cemitério que cresceu tanto com o tempo que agora é preciso um mapa para se encontrar a campa procurada…) e a própria busca do Sr. José é labiríntica, já que ele toma, por vezes, acções pouco óbvias, como se preferisse andar às voltas em vez de encontrar imediatamente a mulher - como por exemplo nunca se lembrou de procurar o seu nome nas páginas amarelas até a Sra. do rés-do-chão lhe ter falado nisso.

Não vou tentar aqui achar simbolismos num livro que está absolutamente carregado deles - a constante chuva que persegue o personagem; a maneira como o arquivo do cemitério e o arquivo da Conservatória estão arranjados ser exactamente igual, com as mesmos escalões de funcionários, com a mesma distribuição de trabalho; o fio de Ariadne que é obrigatório na consulta ao arquivo da Conservatória; entre muitos, muitos outros que apenas uma leitura atenta consegue revelar - para me debruçar sobre duas questões que, para mim, não poderiam passar sem serem referidas.

Esta história é um gigante ponto de interrogação sobre o valor de uma vida humana: para a Conservatória somos um nome, para o cemitério somos um pedaço de terra, para aqueles que nos conhecem, o que somos? Para o Sr. José, a mulher desconhecida não era mais nada que não a adrenalina da busca que lentamente se tornou em uma espécie de amor platónico.

O que é a vida humana afinal, pergunta-nos Todos os nomes? Um registo de nascimento e outro de morte num monte de papéis? Se não houver registo, existimos? Morremos se ninguém souber que isso aconteceu? É aquele antiquíssimo enigma - Se uma árvore cair na floresta e ninguém estiver lá para a ouvir, será que faz na mesma o som de uma árvore a cair? - é esta a grande questão que o livro nos levanta. Se o Sr. José não tivesse perseguido a mulher desconhecida ela tinha existido ou não passava de mais uma cara na multidão?

Impossível de não referir é, também, a escrita brilhante de Saramago. Nele, admiro principalmente a sua capacidade de se plantar bem dentro do nosso cérebro a contar-nos uma história. Ao lê-lo, sinto-me como se estivesse a ouvir uma pequena voz a falar dentro de mim, quase que se confunde aquilo que lemos com aquilo que pensamos, e isso é algo que muito poucos conseguem.

O livro está ainda repleto de pequenos momentos, quase outras histórias dentro da principal, que nos deliciam tanto como a maior - as conversas do Sr. José com o tecto e o pastor que trocava as tabuletas que indicavam as campas dos suicidas no cemitério são dois bons exemplos disso.

Se as personagens de Saramago parecem pouco profundas é porque o são - elas existem meramente com o propósito de ilustrar um bem maior, são meros peões para contar aquilo que é preciso contar - talvez por isso os nomes não sejam importantes mas sim a sua função dentro do intrincado labirinto que é Todos os nomes.

Aconselho também a leitura deste breve ensaio, que pode esclarecer melhor ou lançar ainda mais dúvidas sobre esta obra.

Escrito originalmente aqui.
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Laura
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« Responder #1 em: Setembro 02, 2008, 19:32:33 »

Gostei muito desta tua análise do livro, Tim. Olha, aprendi uma coisa:

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Se as personagens de Saramago parecem pouco profundas é porque o são - elas existem meramente com o propósito de ilustrar um bem maior, são meros peões para contar aquilo que é preciso contar - talvez por isso os nomes não sejam importantes mas sim a sua função dentro do intrincado labirinto que é Todos os nomes.

Abraço,
Laura
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Tim_booth
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« Responder #2 em: Setembro 02, 2008, 19:36:20 »

Obrigado pela leitura atenta Laura.

Cheers
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Goreti Dias
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« Responder #3 em: Setembro 02, 2008, 20:00:25 »

Uma boa leitura, essa que fizeste. A obra de Saramago é digna de todo o respeito. Tem livros mais bem conseguidos que outros, mas não foi por falta de merecimento que obteve o Prémio Nobel. Apenas um aparte. Ele não foi o único português que recebeu o Nobel. Um meu parente afastado recebeu-o: Egas Moniz (Medicina).
Há quem critique Saramago e o una a características de escrita que nem sempre estão presentes. A falta de pontuação, por exemplo, não se apresenta na sua obra por norma. Mas poucos falam na simbologia riquíssima das suas  narrativas.
A Jangada de Pedra foi um livro que me custou imenso ler, parecia que a acção não avançava. Mas até isso se pode considerar intencional. A Península Ibérica também anda a passo de caracol na sua aproximação e afastamento em relação à Europa...
Quanto a este livro, a sua leitura foi agradável. Mas ler na diagonal uma das suas páginas é o mesmo que perder o sentido de múltiplos símbolos por ali espalhados!
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Goretidias

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« Responder #4 em: Setembro 02, 2008, 20:10:32 »

Tem razão Goreti, referia-me ao único Nobel da literatura!

A questão da falta de pontuação nos livros de Saramago é uma daquelas de amor e ódio: para mim é essa a característica que dá a tal voz dentro de nós e torna os seus livros como um grande amigo que fala para nós...

A Jangada de Pedra nunca li, nem o devo fazer tão cedo, mas um dos meus objectivos enquanto leitor é ler toda a obra de Saramago, já que é um dos meus autores favoritos.

Eu diria que Todos os Nomes é um carrilhão de símbolos mascarado de livro...

Cheers
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