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Autor Tópico: Nenhum olhar  (Lida 8106 vezes)
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Tim_booth
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« em: Setembro 09, 2008, 00:56:11 »

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Adeus mulher. Adeus filho. Adeus pai. Adeus mãe. Adeus irmã. Estão os vossos rostos diante de mim. Estarão para sempre. Penso: sempre e nunca mais são o mesmo lugar. Mulher, filho, pai, mãe, irmã, não chorem por mim. Ainda há searas para as crianças. Ainda há as crianças. Guardem as lágrimas para um dia de mais alta nomeada. Guardem as lágrimas para o dia em que morrerem as searas nos olhos das crianças, para o dia em que morrerem as crianças. Hoje, morro eu. E eu morrer não é nada na ordem implacável do mundo.

    - José Luís Peixoto, Nenhum olhar


José Luís Peixoto é o primeiro jovem escritor a ser trazido à lupa do Livros (s)em critério. Escritor é uma profissão interessante, é-se considerado jovem no ofício até quando? Questões de idade à parte, a carreira deste autor, não sendo das mais longas do país, é já de um tamanho e variedade respeitável, com trabalhos em prosa, dramaturgia e poesia publicados desde 2000.

Em 2001, viu-se agraciado com o Prémio Literário José Saramago atribuído a este romance - Nenhum olhar. É precisamente deste modo que o livro acaba, com esta frase. É claro que não estou aqui para escrever sobre finais mas sobre a obra completa. Admito que comecei a ler um pouco a medo. Na literatura, como em tudo, o que me chega através de um hype, que não conseguimos negar que José Luís Peixoto tem, deixa-me sempre de pé atrás - tive medo de estar a ler um livro que sucessivas boas críticas tivessem ajudado a “deusificarâ€.  Estava enganado? Redondamente. Continue, pois, a ler, caro leitor.

O livro está dividido em duas grandes partes, e, mais do que por páginas, por trinta anos passados na história comum de uma aldeia, claramente no interior de um país. Essas partes estão, no entanto, ligadas por personagens eternas (como o velho, velho Gabriel e a cozinheira viúva) que fazem de ponte entre as duas histórias de uma mesma história.

Dentro das suas páginas encontramos um mundo à parte, uma espécie de Portugal imaginário como os nossos avós o imaginavam, presos às suas crenças. Começa aí uma das qualidades deste livro, a capacidade de criar um mundo tão próximo das crenças rurais deste povo. Por isso vemos pessoas como o velho Gabriel, que já era velho quando a primeira pessoa da aldeia se lembrava dele e era velho para as crianças que cresceram para ser homens; vemos José, filho de José, com a profissão do pai, tal como o mestre Rafael seguidor da mesma profissão do progenitor; vemos as filhas a cuidar dos seus pais dementes, como sua obrigação de boas filhas; vemos a cadela do pastor, leal ao ponto de morrer ou matar pelo seu dono; temos o monte das Oliveiras, propriedade do Doutor Mateus, que nunca por lá foi encontrado a não ser na memória dos habitantes da aldeia e dos seus empregados; vemos gémeos siameses, demónios, cozinheiras escultoras de comida e gigantes. Um manancial de possibilidades para trabalhar.

O livro começa com a história do primeiro José, o pai, que vive obcecado com a nova empregada do Doutor Mateus, com quem mais tarde se casa e vive. É, no entanto, constantemente arreliado pelo demónio que o desafia com constantes boatos, sempre à frente de um copo de vinho tinto e sempre na venda do judas, do envolvimento da sua mulher com o gigante. Esta constante tentação consome José por dentro e a sua vida por fora. O velho Gabriel aparece-nos aqui, como irá aparecer também trinta anos mais tarde, como o prenúncio sempre ignorado de que algo mau vai acontecer, tentando dissuadir José de ouvir o diabo. Paralelamente, o gémeo Moisés casa-se com a cozinheira viúva sendo abençoado com uma menina, mesmo apesar de ambos os pais terem mais de 70 anos de idade.

Na segunda parte do livro, trinta anos mais tarde, vemos José, filho de José e pastor como o pai, o seu primo Salomão e a mulher deste formarem um estranho triângulo. José e a mulher de Salomão passaram ao lado da felicidade juntos; Salomão e a mulher vivem sem viverem; Salomão e José, primos e amigos de infância vêm a sua amizade ameaçada pelas constantes tentações do diabo a Salomão, tal como tinha feito trinta anos antes ao seu tio. Há também a vida de um mestre de marcenaria que apenas tem um braço e uma perna e da sua mulher, uma ex-prostituta cega. Há mais um aviso do velho Gabriel, novamente ignorado. E um calor terrível, um calor que percorre todo o livro e que se vai acentuando com o passar das páginas até a nossa própria visão daquela aldeia parecer derreter levemente quanto mais o final se aproxima, como se todos nós, livro, personagens, autor e leitor estivéssemos a mergulhar lentamente num inferno cada vez mais ardente, saudados pelo diabo, personagem eterna no imaginário português.

O que mais agrada neste livro, para além da história e do brilhante mundo construído, é a constante mudança do ponto de vista narrativo: ora temos um narrador neutro, ora um personagem, ora outro, por vezes vários personagens a ver a mesma cena com perspectivas diferentes e, ocasionalmente, com perspectivas iguais quando se quer reforçar a ideia de um laço invisível. Gosto também do ritmo de leitura, apesar de ser um pouco estranho no início: não é assim tão fácil a adaptação, não bastam duas linhas para ficarmos imersos neste mundo paralelo como diz Eduardo Prado Coelho acerca deste livro, mas um capítulo é o bastante. O autor foi capaz de criar episódios terrivelmente marcantes, profundamente dolorosos, dor essa que cobre o livro de ponta a ponta, é, como li algures, um livro profundamente português nesse aspecto, impossível lê-lo e não pensar em fado, ou fatum, contribuindo para isso também todo o mundo imaginado em que os nossos avós acreditavam piamente.

Surpreende também, não pela qualidade da escrita (que se esperava de um vencedor do Prémio Literário José Saramago), mas pela profundidade subtil que José Luís Peixoto soube dar às suas personagens. Não é preciso escavar muito para perceber que todas têm razão de existir: o velho Gabriel que representa a consciência de um povo, a cara amigável que todos tivemos ao crescer; o escritor alheado de tudo, tal como o próprio Peixoto, tal como o leitor, e tal como aqueles que vivem noutra realidade, tornando-se num portal para o mundo fora do livro; o diabo, origem do mal e da desgraça, tentador e tentação; a voz na arca, talvez o ponto mais enigmático do livro que sugere imensas interpretações: tanto pode ser a voz muda do homem que escreve fechado num quarto sem janelas como uma porta por onde todos os pensamentos de todos os homens da aldeia são ditos em voz alta. É claro que isto são apenas especulações deste vosso escriba, só José Luís Peixoto sabe responder; ou talvez nem ele o saiba, às vezes os livros e os personagens criam-se sozinhos dentro dos seus autores…

Havia muito mais a dizer deste Nenhum Olhar, muito, talvez o mais importante ainda, ficou por dizer. Mas, tal como todos os livros, ninguém consegue dizer tudo o que quer acerca dele, porque há sempre mais a descobrir. Convido-vos a descobrirem por vós mesmos este mundo tão próprio de Peixoto e tão próximo de Portugal. Jorge Amado foi capaz de transportar nos seus romances o calor da Bahia, José Luís Peixoto parece apto a captar a essência do povo português.

Escrito originalmente aqui.
« Última modificação: Setembro 09, 2008, 23:47:49 por Tim_booth » Registado

Laura
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« Responder #1 em: Setembro 09, 2008, 23:39:02 »

Fantástica análise, Tim, de um escritor que para mim é um completo desconhecido. Impossível não querer ler os livros assim por ti lidos e sentidos. Os livros, a mim, mergulham-me num silêncio, retiram-me do mundo e vejo-me incapaz de sobre eles discursar. Apenas posso citá-los, quando apropriado. Não posso deixar de invejar - sem ponta de maldade -esta tua capacidade de levar os outros a ler. Para mim, é um dom.
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Tim_booth
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« Responder #2 em: Setembro 09, 2008, 23:51:50 »

Obrigado pelo elogio Laura. Não acho que isto seja um dom ou uma capacidade especial. O que é, e te posso dizer com toda a verdade, é algo que me dá muito prazer, falar e discutir sobre as coisas que leio.

Esta crítica em particular tem a vantagem de ser a primeira que não foi feita de memória, escrevi-a assim que acabei de ler o livro e ainda tinha algumas notas que fui tomando ao longo da leitura, por isso julgo estar ligeiramente superior às anteriores.

Através do Myspace, convidei o autor a passar lá em casa para ler esta crítica, agora a ver vamos se ele vai, se for lê, e se ler diz alguma coisa.

Mais uma vez tenho de te agradecer por me teres trazido para esta casa, que é para mim, uma verdadeira casa.

Cheers
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damasco
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« Responder #3 em: Setembro 10, 2008, 20:27:38 »

Uma excelente análise! Sinceros parabéns!
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« Responder #4 em: Setembro 10, 2008, 20:43:54 »

Com uma análise destas, o autor bem pode aceitar o teu convite!
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Laura
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« Responder #5 em: Setembro 10, 2008, 22:15:06 »

Se não aceitar, não leio... mas essa página dele no myspace pode ser uma simples acção de marketing...
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Mel de Carvalho
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« Responder #6 em: Setembro 10, 2008, 22:20:04 »

Tim, ver trazido aqui este autor, de que sou fã em poesia, não tendo lido até hoje nada de prosa, foi um desafio a que, tão breve quanto possível leia o livro.
A sua análise é deveras interessante, quer do ponto de vista da abordagem literária que faz, quer, e não menos importante, pela análise psico-social dos personagens.

Do seu trabalho, num todo, só lhe posso dizer que, em boa hora se juntou a nós. E digo mais: consigo aqui a casa ganhou de sobremaneira por várias razões, em especial porque, sendo como diz, ainda muito jovem é sem margem para dúvidas, um jovem esclarecido, convicto e generoso.

Bem-haja, Tim, e venham mais livros.
Permita-me (tenho idade quase para ser sua mãe), que lhe deixe um beijo fraterno
Mel
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« Responder #7 em: Setembro 10, 2008, 23:27:41 »

Amigos, vocês deixaram-me realmente feliz com todos os vossos comentários... Mais que feliz, deixaram-me quase envergonhado...

Damasco:
Obrigado pelo elogio. É algo trabalhoso (cada crítica leva-me mais de uma hora desde a escolha da citação até ao último ponto final) mas que me dá imenso prazer. E é sempre bom ver o nosso trabalho reconhecido. Smiley

Laura:
É provável que seja marketing, mas, mesmo assim, descobri que muitos dos artistas portugueses gerem eles mesmos as suas páginas do myspace. O guitarrista e o baterista da Rita Redshoes já me deixaram mensagens na minha página (com o guitarrista tive mesmo uma discussão interessante acerca do instrumento) por isso nunca se sabe, talvez passe mesmo por lá... o Valter Hugo Mãe também me deixou uma mensagem de agradecimento, mas nesse caso foi muito genérica, pode não ter sido o próprio...

Goreti:
Espero que sim, ele pode apontar aquilo que de mal interpretei...

Mel:
O seu comentário deixou-me absolutamente sem palavras. Fico muito contente por ter sido tão bem recebido por todos vós e por me deixarem ter uma participação tão activa quando ainda nem um mês vai desde que aqui cheguei. Sempre fui tratado com carinho e respeito por todos e isso só me fez trabalhar ainda mais para poder estar ao nível dos autores que por aqui estavam.
E claro, pode deixar todos os cumprimentos que quiser, eu recebe-los-ei com todo o carinho e retribuirei do fundo do coração, aqui a idade não conta a não ser a idade das palavras e essa é toda a mesma.

Dite:
Acabou mais por fazer uma análise ao meu trabalho do que ao livro e deixou-me muito feliz com o seu comentário. É esse o meu objectivo: intrigar as pessoas, arranjar leitores para os bons escritores, porque esses também têm o direito de viver daquilo que gostam de fazer, não apenas os autores de best-sellers. Eu é que tenho de agradecer as suas palavras que me deixem incrivelmente feliz e animado por estar aqui junto de vós!

A todos o meu mais sincero agradecimento e uma vénia, pois em cada um de vós reconheço qualidades que em mim mal se vislumbram.
Despeço-me como sempre, em sintonia com o meu nome anglo-saxónico,

Cheers
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Obrigado, Administração, por avisar!
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Olá! Boas leituras e boas escritas!
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