Djabal
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« em: Dezembro 23, 2008, 19:27:06 » |
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Em …. , meu pai deixou o emprego na Ford, a fim de mudar para Idaho e abrir seu próprio negócio. Em vez disso, teve poliomielite e passou seis meses num pulmão de aço. Após mais três anos de tratamento, mudamos para cidade de Nova York, onde meu pai finalmente conseguiu um emprego de vendedor, desta vez da companhia inglesa Jaguar. - Paul Auster.
Atendo ao pedido do telefonema. Volto para visitar meu pai. Hospitalizado. Sento ao seu lado. Ele está assistindo a um jogo de futebol. Pede para que desligue o aparelho. Do nada começa a me contar.
Andando à s cegas, percebo vários pontos de claridade, eles não fazem um caminho perceptÃvel. Uma eletricidade estranha está no ar. Então…
Um clarão atravessa uma grande janela e ilumina tudo, um balcão serve (Café Petrie Court) aos ruidosos e apressados clientes. Estou sentado, calmo, pensativo e impressionado com uma estátua de Rodin. Primeiro a cor, imaculadamente branca, como se não tivesse nada dentro e não temesse nada de fora. Plácida. Pura. Cristalina. Dela pulsa uma força vital, incompreensÃvel para mim. Uma força de recém-nascida. Uma iluminação. Fui forçado a sentar. (Não sei se a estou olhando diretamente ou se olho para o meu interior e a imagem que guardei dela. Não consigo mais distinguir). Conhecia-o apenas o nome, vergonha dizer, mas jamais poderia imaginar que uma imagem esculpida numa pedra, ou num bronze pudesse me transmitir alguma coisa. Acostumei-me com as estátuas de comandantes, instaladas em meio ao trânsito, ou monumentos de pedra, no centro de um parque, onde a atração está na velocidade. Velocidade de quem passa e olha alguns forasteiros incautos sentados na obra para guardar uma recordação.
Diante daquela presença maciça, busco em outro compartimento a minha Clawdia Chauchat, a quirguiz de olhos tártaros, entrando numa sala, iluminada por aquela mesma luz. A toalha enrolada na cabeça tinha sua ponta sobre as costas ainda úmidas. Eu podia perfeitamente ver através de seu corpo as gotÃculas escorrendo. O rosto abaixo dos olhos é formado por um arco, maçãs, nela, salientes. Tornando-a próxima e distante. Os olhos são cinzazuis. A boca é pequena e o lábio superior é arrebitado, uma véspera de um beijo. O corpo é jovem. Firme e simétrico. Uma sutil teia azul é perceptÃvel.
Fiquei paralisado. SaÃram raÃzes dos meus pés buscando fixar-se naquele local, na tentativa de imortalizar aquele instante. Saboreei o significado de uma pequena morte. Entrando, conversou com sua irmã. Não desviou uma única vez o olhar. Descobri seu telefone. E seu desinteresse…
O meu amor tornou-se patético, demonstrado em palavras, atos e rosas. Nada. Caminhões delas. Nenhuma resposta. A única maneira de me aproximar foi me transformar numa réplica dela mesma. Repliquei todos os sentimentos, desejos, sensações; fui egoÃsta, mesquinho, materialista, racional, frio e ventoso como se estivesse numa estepe. Acabei conseguindo a sua atenção. Ela estava se (me) amando. Marcamos o casamento. Seguimos o ritual. Convites. Distribuição. Templo. Cancelei a cerimônia, quinze dias antes.
Ele cerra os olhos. …
Volto ao caminho escuro e cego naquele, agora sei, corredor escuro com luminosidade de estrelas distantes e frias, para um…
Interlúdio
Vejo uma cena de amor num filme acompanhada por Granada de Albeniz; volto à casa e aterrisso em minha poltrona, leio:
Na romança, a tensão apaixonada cresce a cada verso, a cada palavra; justamente pela força dessa tensão extraordinária, o menor toque falso, o menor fingimento, a mÃnima inverdade, que passam tão facilmente despercebidos numa ópera, teriam aqui destruÃdo e deturpado todo o sentido da obra. Peça tão pequena, mas tão extraordinária, exigia inteiramente a verdade, uma autêntica e integral inspiração, uma paixão verdadeira ou uma assimilação poética integral. De outro modo, a romança não somente fracassaria por completo, mas poderia mesmo parecer horrenda e quase desavergonhada: seria impossÃvel expressar semelhante força de tensão do sentimento amoroso, sem despertar repugnância, mas a verdade e a simplicidade salvavam-na.
Não acredito em alertas e no destino. Cometo um casamento de conveniência. Confessei minhas experiências e reciprocamente ouvi confissões, disso nasceu uma amizade e cumplicidade. A razão indicava e obedeci. Ela, nascida nas Filipinas, com uma feição e tradição oriental. Era respeitada no trabalho, juntamos nossas economias e prosperamos. Cada dia passado formava um com outro, cubos. Nossa vida foi formando dados, não tecidos, nem memórias. Apenas dados uns sobre os outros. Uma rotina de vida rÃgida, jesuÃtica, acinzentou tudo o que tocava. Afastei-me estando presente. Uma culpa constrangedora e acusatória falava sem dizer uma palavra, sem dar um olhar, sem uma discussão, sem uma briga que desculpasse um rompante. Fingi, simulei. Os dados se transformaram em correntes, e era meu dever puxá-la até onde conseguisse. Um dia rompi. Escrevi na parede da minha antiga casa: Contado, pesado, dividido. E a deixei.
Não só de arrastar correntes vive o homem. Entre uma jornada e outra o destino costuma piscar os olhos. E numa piscada vi: Cláudia. Para um sentimento como aquele não existe o tempo. Ele é sempre fresco jovial e imediato. Ela estava parada. Passei e a cumprimentei. Dias depois recebi sua ligação. Retomamos de onde havÃamos parado. O processo de transformação retomou do ponto onde havia parado. Ela se descobrindo totalmente e eu me adaptando a tudo que via, ouvia. Lutando para encontrar as razões das minhas concessões. Uma interminável lista de meios-termos. Como seu eu temesse as arestas e os extremos. Cedi. Senti um vazio crescente na alma. Conclui que estava morto. Não havia mais nada em mim a não ser uma casca ressecada e silenciosa.
Volto a dormir. Um sono sem luz. Escuro. Reparador. Sem alternativas coloridas. Perdi minhas crises de insônia. Tornei-me um fantasma com manias concretas que habita um corpo, que pouco a pouco deixa de pulsar. Algo, alma, já se foi.
Essas luzes que vejo no corredor do meu crânio, abrem uma passagem para outra cena…
Final.
Hoje devo fazer um depoimento na delegacia de polÃcia. Fui convocado como testemunha por uma parte ofendida. Desço do carro diante de um prédio antigo, uma lembrança das casas dos barões do café. Lembrança arruinada e desconjuntada. Viaturas polÃcias estacionadas a quarenta e cinco graus lotam a calçada. Policiais cujas camisas fazem o possÃvel para conter a força da barriga contra os já frouxos botões. Sento. Ouço um choro de criança. Uma menina de seus treze ou quatorze anos, franzina, suja, adornada por duas tranças feitas nos cabelos grossos, vestido curto, puÃdo, uma caixa de balas nas mãos. Está vergada sob o peso das pancadas de cassetete. Deixa cair sua caixa, é pega por um braço e com o outro se defende e grita. Não chora mais, grita. Levanto indignado e converso com o agressor. Sou informado da sua condição de ladra. A mãe sai para o trabalho e a deixa só, o dia inteiro. Ninguém a educa. Ela comete pequenos crimes todos os dias. Delegacia é um lugar onde não existe criança. Existe apena criminoso, ou não. Sou chamado pelo delegado. Atônito, disse-me “O que o doutor precisa?†“Nada. Fui intimado para prestar um depoimento.†“Ah, deve ter sido algum engano, não se preocupe. Deixe seu telefone. Informarei se, de fato, sua declaração for indispensável.â€
Adormece.
Será que as suas histórias alinhavadas, as confissões que fez da sua derrota, dos golpes que trocou com o mundo todo, a dignidade atingida, tudo isso me dará coragem para escrever as minhas próprias histórias? Descer ao mar? Ou será melhor continuar a saga sem que ninguém mais saiba, sem nenhum herói?
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