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Autor Tópico: Cobras  (Lida 7486 vezes)
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Pedro Ventura
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« em: Agosto 09, 2008, 13:52:54 »

Na história da Freixeda, uma aldeia cerrada entre os montes e vales transmontanos, são inúmeros os episódios em que as personagens principais são aqueles animais rastejantes, carnívoros por natureza e apreciadores de outras gulodices, venenosas algumas, aterradoras quase todas, a que apelidamos vulgarmente de cobras, ou, para os mais sabedores do reino animal, répteis poiquilotérmicos.
O que se traz aqui é então o relato vero de dois acontecimentos, antiquíssimos, que envolveram humanos e esta casta de bichos, pouco acarinhados entre o comum dos mortais. Não fique o leitor a pensar que a Freixeda é uma plaga pejada de cobras e merecedora de exaustivo estudo herpetológico. As que por ali se encontram são cobras comuns, não raridades como existem por esse mundo fora. Lançado o mote, será melhor prosseguir, antes que o leitor se amedronte e se esgueire com o rabo entre as pernas.
A primeira história é a de Cacilda, e passara-se num rigoroso Inverno, às entradas de Janeiro. Na altura era ela uma jovem formosa, fecunda e pobre como tantas outras do lugarejo.
Todos os dias, a meio da tarde, já o Sol perdia o seu alento e a lua cheia ganhava vigor, luz revezada por luz, quando tornava da labuta no campo, onde ganhava o sustento para os seus cinco descendentes, três raparigas e dois rapazes, Cacilda espraiava-se na sua tarimba forjada a ferro e, esfalfada, corpo moído, mãos mordidas da enxada e rasgadas de frieiras, mãos que avelhentaram prematuramente, deixava-se adormecer, sem nesga de sonho, com o seu filho mais novo ao colo, ao mesmo tempo que o aleitava. Numa dessas tardes, Cacilda foi arrancada da sua letargia pelo carpido da criança e, instintivamente, e não vendo motivo para tal, pois sentia o seu peito a ser sugado, deu-lhe um açoite ao de leve nos cueiros de pano. Este sucedido voltou-se a repetir nos dias seguintes e o planger do menino estendia-se a grande parcela da noite. “Mas porque raio chora esta criança?!â€, perguntava de si para si. Até que um dia, Cacilda, decidiu partilhar estas ocorrências com a sua vizinha Eulália, que contava na sua prole doze filhos.
- O gaiato não pára de chorar! Dou-lhe mama e ele não pára de chorar…
- Há quanto tempo isso acontece Cacilda?! – pergunta-lhe a vizinha Eulália.
- Há uns quatro dias, e o berreiro arrasta-se durante toda a noite… Mal durmo. Ando tão cansada Eulália…
Depois de cogitar por momentos, a vizinha profere-lhe:
- Cacilda, olha que tens cobra em casa!
- Tenho cobra em casa?!
- Sim, a criança chora porque tem fome. É a cobra… Tens de te precaver. Tens de esperar pela cobra e matá-la, vai por mim que essas bichas não podem sentir cheiro a leite…
Assim, no dia seguinte, Cacilda fez o mesmo de sempre, acamou-se com o rebento, dissimulou o sono, que na verdade lhe pesava como uma bigorna nas pálpebras, mas pôs-se de atalaia, para se certificar da veracidade das palavras da sua vizinha e tentar resolver o mistério que coabitava na sua casa. E este povo raramente se engana nas suas premonições. Se dizem que vai chover, é porque vai chover mesmo, por vezes são os próprios ossos que o dizem, se auguram desgraça, é porque ela está para chegar em pezinhos de lã… É a despretensiosa sapiência de quem apenas vive com o céu por cima das suas cabeças e com a terra debaixo dos seus pés, de quem conhece bem os elementos. Até que, quando os seus olhos extenuados começaram paulatinamente a resvalar para a modorra, Cacilda vislumbrou uma cobra, mais de meio metro de bicho, a entrar por um buraco do seu tugúrio de granito. “ Ai, filha de um cabresto! â€, praguejou ao se deparar com o horripilante réptil. Em passos calados, com algum tremor interior, pegou na sachola, respirou fundo e, num ápice, ceifou o bicho em três. Cacilda já tinha ouvido algumas histórias sobre cobras que se enrolavam nas pernas das vacas e das cabras quando lhes cheirava a leite, mas jamais pensou que isso poderia acontecer às pessoas. Ao tomar atenção ao animal que jazia ali à sua dianteira, estropiado, ensanguentado, chegou à conclusão de que quem andou a mamar no seu peito e a beber o seu leite durante aqueles últimos dias foi a cobra, que desviava o menino do mamilo da mãe. Era uma imagem aterradora. Só de pensar, um sismo percorria-a por dentro. Sorte ter Cacilda os olhos trancados pelo sono. E mais, Cacilda acabou por se asseverar da argúcia do animal e do perigo que ambos correram durante essas incursões. Enquanto a cobra se deleitava a extrair o leite do seu peito, levava o seu rabo escamoso à boca do seu filho, que acabou por andar dias sem beber uma gota de leite materno. O rabo da cobra estava seco de tanto o menino chuchar. Ainda hoje, volvidos tantos anos, Cacilda não deixa de sentir um pavoroso arrepio espinha acima sempre que relata esta história, e, sem que dê conta, cruza os braços sobre o peito com toda a força, em jeito de protecção, como se a cobra estivesse ali mesmo à sua frente.
Esta foi a história de Cacilda, que acabou por ter o final desejado, já a história de José, apesar de se revestir de alguma ternura, teve um desfecho bem pior.
Apesar da sua fresca idade, treze anos somente, e do seu corpo franzino, José era considerado um dos melhores pastores da Freixeda. Este seu esmero nas artes pastorais grassou-lhe a reputação e valeu-lhe grandes disputas e cobiças por parte dos grandes senhores da aldeia, para terem os seus préstimos na guarda dos seus vastos rebanhos. Nas feiras que se realizavam mensalmente na vila contígua, raras eram as vezes que de lá vinha sem que animal guardado por si não arrecadasse prémio ou tivesse dificuldade em ser vendido. Entre os pastores da aldeia e redondezas, José era o que tinha melhor jorna, o que suscitava algumas invejas, às quais, o pequeno guardador se mantinha apartado. Quem fala demais ganha pouco, ele falava menos e ganhava mais.
Certa vez, enquanto guardava as cabras, sentado numa fraga, absorto, vistas pousados no solo e com o bordão arrimado ao seu lado, sem dar fé, uma cobra vizinhou-se. Não tinha mais de dois palmos dos seus. Afoito, pegou-a e passou-lhe os dedos pelo dorso de escamas granulares. À falta de gente em seu redor com quem pudesse permutar uma ou outra palavra, com alguma inocência imiscuída, começou a conversar com o animal.
- Tens fome minha linda? Eu vou cuidar de ti para cresceres!..
De chofre, ocorre-lhe uma ideia, que logo a pôs em prática. Olhou para um pequeno buraco na fraga onde se sentava enquanto vigilava o gado e o céu o vigilava a ele, e nesse mesmo buraco depositara uma pinga de leite que mungiu de uma das cabras. Depois meteu a cobra na reentrância, e ela bebeu o leite a seu bel-prazer. Saciada então, lá desaparecia entre as giestas, ziguezagueando. Todos os dias, durante anos, este episódio repetiu-se. A cobra, bem nutrida, medrava visivelmente. De não mais de dois palmos para três, quatro palmos, meio metro… O à-vontade era tal que chegou ao ponto de, com um assobio, a cobra sair do seu covil e enrolar-se bordão acima, qual bordão de Esculápio, e, amistosamente, instalar-se aos ombros de José. As evidências atestavam que o bicho estava adestrado.
Os anos fugiram e José passou a sua maioridade. Foi convocado para a guerra nas colónias portuguesas em Ãfrica, para desalento de quem gozava dos seus serviços de guardador de rebanhos e do seu animal de estimação que iria andar ao deus-dará. Na guerra José cumpriu três anos, cinco meses e dois dias. Esta precisão de facto é somente porque quem passou por lá não esquece estas coisas. Sorte teve em vir inteiro e sem mazelas psicológicas. Depois do tempo cumprido, tornou à Freixeda com um patrício seu que encontrou à vinda. Mal chegou à aldeia, igual como outrora, dirige-se ao seu patrício e diz-lhe:
- Anda comigo, quero mostrar-te uma coisa!
- Onde me queres levar, José? Não vamos matar as saudades da família primeiro?
- Temos todo o tempo do mundo para matar as saudades. Anda daí! – os seus olhos rebrilhavam.
Nisto, José guia o seu amigo expeditamente ao sítio, pelos trilhos que tão bem conhecia, para ver a cobra que, durante a ausência de três anos se tornara num enorme e respeitoso animal. Mais de um metro e meio e mais larga do que um pulso de homem. Mal chegaram, José solta o seu peculiar assobio de chamamento, e, parida das mesmas giestas, também elas agora maiores, lá se acercava o réptil. Dirige-se primeiro ao buraco da fraga, onde nada a esperava, e depois começa trepar mansamente pelo corpo do seu pai adoptivo, se assim se poderá dizer.
- Este é o meu animal de estimação! Criei-a desde pequena. Vês como me responde e vem logo?!
- És doido José! – diz-lhe o amigo, mantendo a distância.
- Não te faz mal, toca-lhe! – profere confiante e com orgulho.
- Nem penses!.. Lá na guerra, bichos destes eram aviados a chumbo e eram jogados à fogueira.
Nesse dia José não tinha cabras, tampouco leite, e, a páginas tantas a cobra, talvez guardando algum rancor, se tais sentimentos cabem em tal ser, ou por falta do alvo líquido, foi começando a enrolar-se subtilmente ao pescoço de José, uma e outra volta, cada vez apertando com mais força. Quando José se sentiu ameaçado já era tarde de mais. O seu rosto era todo rubor, suor e aflição. O seu sangue estacara. Sufocou. Atraiçoado pelo jogo silencioso da criatura, ficara-se ali mesmo à frente do seu companheiro, que, sem reacção, sem brados, assistiu a tudo e, em pânico, desertou a correr para a aldeia a pedir auxílio.
José não morreu entre balas e morteiradas, acabou por morrer com o veneno que ele próprio criou. Se Cacilda, sua mãe, lhe tivesse narrado o episódio da sua meninice, talvez ainda hoje José fosse o mais cobiçado guardador de rebanhos da Freixeda.

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« Responder #1 em: Agosto 11, 2008, 23:08:31 »

Viva Pedro

Gosto de te ver por aqui.
Reli com grande prazer esta história..rastejante e assustadora.
Abraço
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« Responder #2 em: Agosto 12, 2008, 10:46:34 »

A história da Freixeda envolve-nos de uma ruralidade e conto popular de modo fantástico. Não consideraria este conto como assustador, antes como repugnante. A ideia de um animal rastejante mamar como uma criança enoja-me tanto como me fascina. A paixão do pastor José, quase que maternal, por um animal traiçoeiro por Natureza adivinhava um final trágico.
Gostei do tom rural com pinceladas de cientificidade pelo meio e acima de tudo do ritmo de conto contado à volta da fogueira.

Um dos melhores contos que li nos últimos tempos, parabéns sinceros.

Cheers
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Laura
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« Responder #3 em: Agosto 12, 2008, 20:04:02 »

Já tinha lido este conto noutro sítio e também gostei muito. Horripilante e fascinante ao mesmo tempo, como se as teias invisíveis que tudo ligam por vezes se contorcessem, como essa cobra, e abocanhassem o fio errado da vida.
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Pedro Ventura
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« Responder #4 em: Agosto 12, 2008, 21:06:37 »

Obrigado! Ainda por cima são duas histórias verdadeiras!
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« Responder #5 em: Agosto 12, 2008, 21:33:51 »

Se são verdadeiras não sei. O que sei é que essas coisas se contam pelas aldeias. Eu mesma conheço uma pessoa que alimenta as cobras com leite! Mas não as coloca ao  pescoço!
Muito bem escritos!
Um abraço
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Pedro Ventura
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« Responder #6 em: Agosto 12, 2008, 21:37:09 »

Posso adiantar que o primeiro episódio se passou com a minha avó e a minha mãe! Hurrrrrrr!!! Até me arrepio só de pensar!
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« Responder #7 em: Agosto 14, 2008, 10:47:16 »

Posso adiantar que o primeiro episódio se passou com a minha avó e a minha mãe! Hurrrrrrr!!! Até me arrepio só de pensar!

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Oswaldo Eurico Rodrigues
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« Responder #8 em: Novembro 22, 2011, 19:52:04 »

Olá, Pedro Ventura.

Vi o tópico "Prémio" e daí vim ler o seu excelente conto. Gostei imenso. Aqui no Brasil também falam de cobras que mamam o leite das mulheres e dão a cauda para os bebês chuparem.

Abraço do Atlântico Sul

Oswaldo
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Oswaldo Eurico Rodrigues


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Boa tarde
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Obrigado, Administração, por avisar!
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Boa noite feliz para todos
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Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
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Bom domingo para todos.
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