NunoMiguelLopes
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Não vou gostar nada do dia de hoje, pois não?
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« em: Outubro 08, 2009, 16:17:21 » |
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Worms caminhava dum lado para o outro ao longo do quarto de casal dos novos hóspedes, sempre evitando passear diante do espelho sobre a cómoda não fosse o reflexo levar-lhe o único olho que tinha. Os chinelos rasos e felpudos que davam com o verde pantanoso do roupão trilhavam para cá e para lá a carpete axadrezada que cobria todo o chão do Motel da Escuridão com as suas noções vagas de preto e branco amalgamadas num cinzento sujo que não era carne nem peixe. Nas suas andanças nervosas, observava Pace sentado na cama inclinado sobre o seu terceiro braço mecânico o qual ia rapidamente descarnando, removendo com precisão cirúrgica peças metálicas com a ajuda das ferramentas de aspecto bizarro que produzira do forro da sua longa gabardina. Bliss flutuava estática dois palmos acima do chão xadrez absorvendo a luz dos candeeiros em forma de garra das mesas de cabeceira, bem como, e disto Worms começava a desconfiar, do calor do seu corpo. Todas as vezes que a múmia se aproximava dela, passeando a sua ansiedade nos limites do quarto, sentia um arrepio de frio. Estava perto de se convencer que Bliss era alguma espécie de vampiro e Worms, de todos os tipos de almas penadas que habitavam o mundo, era dos vampiros que menos gostava. Bliss também não parecia morrer de amores por si.
- Acham que não tentei já ir-me embora? – Perguntou Worms, na sua voz de pó seco. Pace não o ouvia, perdido na minúcia da tarefa de canibalizar o braço postiço, e Bliss simplesmente ignorava-o. - Quem me dera a mim nunca ter entrado. Mas estava fatigado de tanto andar e de dormitar nos calhaus e quando dei com o motel achei que podia saber-me bem estender-me um bocado ao comprido nalgum colchão fofo e adormecer sem ter almas penadas à s voltas como abutres dos infernos por cima da minha cabeça. O porteiro convenceu-me e entrei. O cabeçudo ao balcão pareceu-me um nadinha esquisito mas já tinha visto tipos ainda mais esquisitos no caminho para cá e este ainda por cima era bem-educado, por isso pus o meu nome no livro dele pensando eu que vinha para passar a noite, descansar até me sentir descansado e com forças para voltar ao caminho. O tipo deu-me uma chave igual à vossa, aconselhou-me a subir no elevador porque as escadas eram instáveis e quando descobri como abrir a porta e a abri e olhei nem acreditei. O meu quarto não é tão grande quanto este, mas tinha cara de ser muito melhor do que dormir ao relento e o colchão era realmente macio. Larguei as minhas tralhas no armário e deitei-me ainda incrédulo. Dormi não sei durante quanto tempo e quando acordei senti-me bem. Senti-me como nunca me tinha sentido antes. Ponderei passar cá uma temporada e assim fiquei. Encontrei mais uns quantos tipos estranhos nos corredores e no restaurante, volta e meia, mas ninguém se meteu comigo e eu, da minha parte, estendi-lhes a mesma cortesia. Notei que o ambiente por aqui era algo pesado, mas nada que não se visse noutros estabelecimentos do género onde já tinha dormido. Pelo menos não havia prostituição ou se havia, era discreta. Quando decidi ir-me embora, isto da primeira vez, foi porque ouvi umas conversas no restaurante a uns recém-chegados sobre um acampamento a pouca distância daqui e pensei que podia ir até lá e tentar vender as minhas tralhas. Até fiz planos para que se o negócio corresse bem passar por cá no regresso e voltar a pernoitar no Motel. Da primeira vez que tentei ir-me embora dirigi-me simplesmente ao lobbie e pedi para fazer as contas. O tipo, o tal Dolmen, olhou para mim como se eu tivesse dito uma grande tolice e começou a rir-se. Não percebi onde estava a graça. Voltei a dizer que me ia embora e ele disse-me que não, não ia. Abriu o livro e mostrou-me a assinatura que eu lá tinha posto dizendo-me enquanto se ria que quem coloca o nome no livro passa a ser hóspede do Motel da Escuridão para sempre. Para sempre, disse ele. Demorei a perceber o que queria dizer com aquilo. Antes, ainda levantei a minha trouxa do chão e fui para a saÃda, mesmo sem saldar contas nem nada. O riso do homem estava a fazer-me confusão com os nervos. Também começava a ficar assustado porque o barulho do restaurante cessou de repente e o lustre que eles têm no lobbie, aquele que está sempre a balançar, lançou-se numa agitação estonteante que me fez ir de cara ao chão e agarrar-me à carpete. Fiquei sem ver a saÃda e acho que perdi os sentidos. Quando acordei, estava de volta ao meu quarto. As minhas coisas estavam novamente guardadas no armário.
- O que fez depois? – Perguntou Bliss.
- Voltei ao lobbie, furioso – disse Worms, gesticulando. - Estava realmente furioso. Dolmen voltou a explicar-me que enquanto o meu nome estivesse no livro dele, seria hóspede do Motel. Não havia volta a dar. Quando tentei arrancar-lhe o livro das mãos para apagar o meu nome ou rasgar a página onde estava a minha assinatura, ele mordeu-me.
- Dolmen mordeu-o? – Pace levantou os olhos da engrenagem do cotovelo do braço postiço.
- E envenenou-me, aquele patife peçonhento – confirmou Worms, - porque fiquei logo no chão a estrebuchar e a espumar da boca. Quando voltei a mim, era de novo o meu quarto, como da outra vez, só que desta vez… - Worms olhou para a mão esquerda e segurando-a com a direita como se tivesse medo de a deixar cair e que se partisse, - desta vez tinha esta mão ligada e doÃa que nem uma sacana. Foi a dor que me acordou aos gritos. Parecia que Dolmen ainda me estava a morder. Era intolerável. Era… - A múmia começou a desenrolar as ligaduras manchadas de sangue. - Quando virem isto, vão perceber.
As voltas da ligadura repetiam-se e a faixa de pano sujo amontoava-se no meio dos pés achinelados de Worms como um novelo. A cada volta que se destapava, o vermelho escuro ganhava para o esbranquiçado do tecido elástico e o cheiro a podridão desprendido fluÃa para os quatro cantos do quarto agredindo os sentidos de Bliss e de Pace. Os dois deram por si suspensos na antecipação do que a múmia lhes queria mostrar. Pace até deixou a solda pingar em demasia sobre uma dobradiça que fora despedaçada por uma das balas mais certeiras do porteiro durante o tiroteio breve no pátio do motel e quando desse por isso, teria de recomeçar de novo os reparos naquela secção do braço artificial. Bliss aproximou-se um pouco de Worms para poder ver melhor. Quando a palma daquela mão esquerda ficou livre da última rodada da ligadura e Worms a virou para ambos poderem ver bem a medonha ferida, Bliss sibilou de nojo.
A chaga na mão da múmia mostrou-lhe os dentes afilados e sibilou-lhe de volta.
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