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Autor Tópico: Casa Grande (2)  (Lida 1557 vezes)
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damasco
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Frase é uma palavra. Palavra não é uma frase.


« em: Maio 29, 2008, 00:10:38 »

Rasgado quase ao último fio pela queda anteparada, um dos botões forrados a xadrez da camisa branca de Glória aproveitava a gravidade para se encavalitar em cima de um outro. Um dedo aconchegou-o, tentou pô-lo no lugar; o dígito sentiu-o escorregar novamente para baixo. Antunes aproveitou o momento para baixar os olhos envergonhados. No chão, uma casca de noz surgiu premonitória para lhe justificar o olhar. Pôs as mãos atrás das costas e apertou-as com força: na esquerda moravam dois ou três fios brancos do botão de Glória, agora transformados em motivo de adoração. Enquanto se esforçava por os sentir melhor, rebolando-os entre os dedos, uma lembrança de ternura invadiu-lhe os ossudos ombros, fazendo-o escorregar no pensamento da água: Glória a chapinhar nas bordas do lago. Se a vida tem corrido de outra forma, provavelmente estaria agora a bailar-lhe nas cristalinas, despertando-lhe as estrelinhas que são dadas aos recém-nascidos para usarem ao longo da vida. Por um milésimo de consciência escrutinou a sua integridade. No alto da sua cabeça, balançava um chapéu pardo que o haveria de proteger do frio do Inverno e do calor do Verão. Era de poucos gostos e usos.
Glória confessou-se incapaz de ajeitar o teimoso botão e traçou as mãos à altura do umbigo. A mala preta tornou-se pêndulo, medindo a largura das ancas. Como se tivesse acordado de um estupor, a face transfigurou-se, o corpo retesou, as cordas vocais afinaram “O rapaz? Para onde me foi o rapaz?! Gabriel!â€.
Gabriel desceu as escadas a toque de caixa e estacou-se com prontidão ao lado da tia. Agarrou-lhe a mão e olhou para cima, para os olhos, à espera do ralho. “Não sabes que me preocupas, malandro? Fico toda afogueada! Por onde andaste, fedelho? â€. “Fui ver a Laurinda, titi. Ela está tão bonita, parece um anjo. Sabia que os anjos têm asas, titi?â€. Glória, no sorriso, “Sabia, Gabriel, sabiaâ€. Antunes levantou o chapéu, numa vénia mal sucedida, “Até mais ver, meninaâ€. Gabriel e Glória viram-lhe as costas a afastar-se, cinzento, o transido do calor a compassar-lhe o andar. A poeira assentava rente ao chão, estava para vir o calor mais confortável da noite. O céu, indeciso entre rosáceas laranjas, amarelas e vermelhas, dava sinais de querer apagar-se, enquanto a luz do quarto de Laurinda ganhava novo fôlego, escorria ténues sombras pela escadaria dos gigantes. O movimento de entrar e sair estava já mais calmo. Com a solidão da noite a chegar, o recolhimento era maior, os rostos cansados largavam o caiado que os tinha protegido do sol. A tia, cortando o pensar, “É quase noite, Gabriel. Vamos ver a Laurindaâ€.
Lá dentro, Carminda brandia nervosamente as agulhas do croché, projectando a sombra chinesa de dois guerreiros inimigos desferindo golpes mortais na cabeceira de Laurinda. Aos pés amontoavam-se 20 metros de renda de lã: folhas, árvores, flores, sóis e luas, planetas, casas, montes e vales. O tempo parou para Carminda quando a irmã passou à condição de moribunda. Concentrava-se na renda, aniquilava os pensamentos maus a golpes de agulha de croché. “Carminda…â€, a tia, olhos pousados na renda. Carminda deixou descansar os guerreiros por um segundo, olhou-a e acenou levemente a cabeça. As sombras chinesas ganharam novo fôlego, partiram para um arrebatamento de fúria. Podiam ouvir-se as espadas a silvar o ar, os movimentos rápidos e certeiros, a terra espezinhada a voar em todas as direcções. Gabriel aproximou-se de Laurinda e abriu muito os olhos. Tentava vê-la por dentro, perscrutar-lhe o coração, adivinhar-lhe as entranhas. “Laurinda?â€. A tia, “Gabriel, a Laurinda agora não pode responderâ€. Gabriel aproximou-se mais, quase a um palmo da cara. As pálpebras estremeciam com as convulsões da febre. Laurinda parecia não estar ali.
Carminda ainda tricotava a sua culpa quando Glória e Gabriel desceram vagamente as escadas, sensivelmente maiores a descer que a subir. As gárgulas despenteadas refulgiam o céu escarlate, adivinhavam o voo nocturno que as esperava assim que anoitecesse completamente. Já por um momento se espreguiçaram e ficaram naquela posição patética de quem foi apanhado a meio de um movimento.
Meteram-se ruelas adentro. Glória entrou em casa, fechou com muito cuidado a porta vermelha que, no último suão, em Maio, adquiriu um tonalidade agre ao ranger dos gonzos. Passaram pelo silêncio do piso de arrumos e subiram a escada estreita para a cozinha.

Desde que os pais de Gabriel decidiram ir pelo mundo fora à procura de melhores condições, com promessas de rápido regresso, assim o disse tia Glória ao sobrinho quando ele ganhou entendimento, a casa tinha ficado vazia. Glória dedicava-se de corpo e alma a Gabriel e esquecia-se das demais pequenas convenções. O pátio interior ficou remetido ao desabrochar arrítmico dos lírios. Dantes passava as horas vagas diante do piano a ler e reler as pautas, a tentar percebê-las. Improvisava pequenas melodias, sem grande sucesso, diga-se. O pó foi-lhe desconjuntando as notas, até as reduzir a expressões roufenhas de vaidade poenta.
Há onze anos atrás, Florinda e Artur casaram na altura dos figos. Mesas brancas foram postas em quadrado de volta da figueira. Outras três fiadas de mesas, uma das quais destacada, asseguravam os lugares completos. Louça de cornucópias para a mesa principal, louça branca para as restantes. Cerca de trinta convidados orquestravam a melodia da colher na canja de galinha, cuidando que nenhum figo lhes cairia no prato. Mas o motivo de maior interesse, e que todos discutiam, era a quantidade inesperada de tartufos que brotava gloriosamente no tronco da árvore. Glória detinha-se letárgica na contemplação do banquete. Choques eléctricos feriam-lhe a nuca desde a noite anterior; a palete das cores do dia reescreveu-se em cinzentos pastosos; cada passo confirmava que a gravidade enganou a teoria. Artur foi o homem que julgara ter amado numa fantasiada tarde, algures no rebolado dos trevos, no dilúvio do cheiro do alecrim. Só soube que realmente o amava na véspera do casamento, quando a pose altiva de Adriano Abóbada, chefe de cozinha do banquete, lhe reflectiu a sua própria altivez, o seu escárnio pelas emoções. Afundou-se. A matéria estanque e rígida de que era feita a sua alma liquidificou. A enxurrada levou-a de arrasto. No dia do casamento não eram os ciúmes que a consumiam, que esses eram excessivos para o que poderia ambicionar: eram o arrependimento da cegueira e a culpa.
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Goreti Dias
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« Responder #1 em: Maio 30, 2008, 23:04:44 »

Uma óptima narração! Espera-se a continuação...
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Goretidias

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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
Agosto 14, 2023, 16:53:06
Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
Boa tarde!
Janeiro 01, 2023, 20:15:54
Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
Março 22, 2021, 20:50:10
Boa noite feliz para todos.
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Boa tarde a todos.
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Olá para todos!
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Olá para todos!
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Boa noite feliz para todos.
Fevereiro 28, 2021, 17:12:44
Bom domingo para todos.
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