NunoMiguelLopes
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Não vou gostar nada do dia de hoje, pois não?
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« em: Maio 27, 2009, 22:13:03 » |
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A arma dispara primeiro, derramando morte. No beco e por mais alguns instantes ainda, a desmaiada iluminação nocturna denuncia a cena através do smog, que chega aos encontrões vindo da baÃa cheio de vontade de se tornar cúmplice de mais um crime na cidade onde nada se passa, escondendo a vÃtima e o carrasco numa densa massa de pasteleiro irrespirável. Em breve, ambos terão desaparecido nas convulsões burlescas do novo dia. Se não encontrarem o corpo antes do sol assomar sobre as colinas e afugentar as sombras por elas abaixo, trazendo luz e vida à s ruas da cidade baixa, o homicÃdio nunca terá acontecido. É com isso que Pfarr conta enquanto prende o ferro quente ao baixo ventre, entre a fivela do cinto e a púbis, desfraldando a camisa grossa para melhor ocultar o chumaço, quase invisÃvel à luz das candeias que perdiam a batalha com a neblina.
Pfarr inspira profundamente, sorvendo através da lÃngua a frescura do nevoeiro e pressentindo o pulsar da cidade que aà vem, sabendo que lhe faltam balas e lhe sobram nomes. Sente-se agitado, como um budista cujo corpo ainda hesita em abraçar o jejum e a contemplação e em abrir mão do espÃrito, acusando alguma falta de confiança que nem a arma cada vez mais leve lhe pode proporcionar. Nomes e balas, mortes sucessivas numa vida, apertada como aquele beco, sem saÃda e que estava por um fio, por horas. Numa cidade sem serviço de quartos ou prontos-a-vestir, todos deitavam a mão ao que podiam. Pfarr fazia o mesmo. Apenas queria mais do que os outros.
O morto não tem os mesmos problemas em abrir mão do espÃrito. Para ele, é uma questão de sobrevivência. O fantasma escapando pelos poros ergue-se em novelos de fumo e procura a relativa segurança que o nevoeiro que toma conta do beco oferece. Pfarr percebe a jogada, porque era sempre a mesma, e faz a sua. Havia o risco de deixar a presa escapar, dissimulada no smog, ou de não a apanhar a tempo, antes que perdesse a coesão e tudo o que restasse fosse um cadáver perfeitamente redundante que, de qualquer maneira, nem chegaria a ser tocado pelo novoastro. Pfarr saca dum charuto gordo e já algo mascado, clica o zippo duas vezes, puxa a primeira tragada com uma careta de náusea, guardando o zippo na jaqueta e libertando uma baforada para o ar demasiado consistente à sua frente. Fantasmas eram naturalmente habilidosos a esconderem-se, o fumo a terra doce dum Cohiba Robusto era melhor a dar com eles. Melhor que spray nasal, melhor que Brut Original e muito mais másculo que incenso (acabo de rebentar com os miolos de alguém, deixa-me acender um pauzinho de incenso, sim?). O espÃrito era susceptÃvel, mesmo depois de morto o corpo, o espÃrito era sempre susceptÃvel à s coisas boas da vida.
O fantasma aparece perfeitamente traçado no nevoeiro pelo esturro do charuto, cujas moléculas treinadas se pegam ao ectoplasma espectral e mal cheiroso que o espÃrito ainda não tivera oportunidade de largar. Agora, já não se pode esconder de Pfarr, e o assassino expele mais algumas bolsadas de fumo para encrostar a vÃtima ao mundo antes de apagar o charuto na ponta da lÃngua e devolvê-lo ao bolso para quando voltasse a ser preciso. Caminha calmamente atrás do fantasma do homem desdobrado ao fundo do beco com uma bala acantoada na fronte esquerda como uma borbulha que correra mal.
Em pânico, o fantasma começa a perder porções de si mesmo, a pelar, como acontecia à grande maioria deles. Poucos eram aqueles que aprendiam depressa a preservar a sua totalidade. Com esses, era preciso muito cuidadinho. Percebiam que o ter finado não era um inconveniente, era antes uma vantagem. Alguns, outros, conseguiam inibir a desagregação antes que fosse tarde demais, mas aà já pouco restaria deles. Ombros e cabeça. Quiçá, apenas uma mão que, com alguma sorte, seria a que usara a aliança de casados. Era importante manter uma ligação à vida para aqueles que se recusavam a dar o salto, para aqueles que se demoravam por cá. E havia aqueles, e este fantasma dava ideia de ser um desses, que se desfaziam por inteiro e para eles nunca haveria paraÃso, nunca conheceriam o inferno. Apenas um verdadeiro e inescapável nada, o cúmulo do desaproveitamento ascético, como Buda assente no cume da montanha a coçar os tomates sem nada em que pensar.
Pfarr vai novamente à jaqueta e materializa uma máquina fotográfica descartável que já tinha descascado previamente. A matéria que constituÃa um fantasma tinha o condão de se fragmentar em menos tempo do que ele por vezes demorava a remover o invólucro laminado daquelas malditas máquinas. Tudo seria mais fácil com uma digital, mas as digitais não faziam o trabalho bem feito. Era dos pixeis. Não possuÃam aderência, por muitos megapixeis que se gabassem de ter.
O fantasma brilha com um fulgor levemente radioactivo na bruma quando Pfarr tira a primeira fotografia. Um bom fotógrafo fazia o trabalhinho com um clique. Lia a luz, compunha o ângulo, alguns percebiam de pose e eram uns estetas. Pfarr precisava sempre dum rolo inteiro. A última coisa que um fantasma seu ouvia em liberdade era o constante rec-rec da rodinha da máquina fotográfica descartável. Cada vez que disparava, mais um pouco de ectoplasma era aprisionado no rolo.
Pfarr dá uma última vista de olhos em volta. Não lhe escapara nada. Está finalmente sozinho no beco. Guarda a máquina na jaqueta. O dia rompe por cima das colinas, apalpando os picos timidamente e ganhando coragem para descair para a cidade baixa. Os prédios mais altos já reluzem, acima do nevoeiro nocturno que cobre tudo com algodão e Pfarr faz-se ao caminho. Quer chegar a casa o mais depressa possÃvel, e revelar os rolos daquela noite. Acrescentar mais umas almas aos seus álbuns de fotografias.
Quando abria um álbum, gostava de as ouvir gritar.
(fim)
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