gdec2001
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« em: Novembro 07, 2013, 19:24:55 » |
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Gosto de passear junto ao rio mas, por vezes, tenho pensamentos desagradáveis.
Introdução ao romance ou novela...
Conheço duas pessoas, digamos o Sr. M e a Sra. A. , ou melhor, visto que teremos de saber os nomes deles, o Sr. Mário Tovar e a Sr.a Adélia de Sousa, que vivem juntos. Não sei se são casados ou não e nunca perguntei porque tenho vergonha — de lhes perguntar, é claro —. Aceitemos que são . Ele trabalha numa empresa de transportes de mercadorias e conduz um camião. Ela no escritório de uma fábrica de salga de peixe, mas é graciosa como uma rainha... graciosa. É uma mulher de estatura mediana. Os seus cabelos são castanhos dourados e tem, talvez, os seios um pouco grandes para a moda destes dias... Os olhos muito escuros, ainda que não completamente negros, são enormes e parecem fixados no futuro ou num passado distante. O seu sorriso é ingénuo e lindo. Quando ela passa, os homens contemplam-na mas não se atrevem a despertá-la dos seus sonhos. No verão, quando sai do trabalho, vem para casa a pé. Percorre apenas cerca de dois quilómetros mas demora mais que uma hora porque passeia os olhos pelos edifÃcios, pelo Tejo e pela ponte ao longe, achando sempre tudo diferente do que era ontem e anteontem. A ponte está suspensa sobre o rio, adormecida pela lonjura, apesar da turbulência que se pressente na sua superfÃcie cheia de carros que, a esta distância, semelham os de brincar. Os tramos, quando o sol bate nas asnas ou naquilo que como tal se assemelha, aparecem-lhe como chamas vermelhas petrificadas pela distância e aqueles que ficam à sombra são plúmbeos, quase negros. E há algumas zonas intermédias em que as chamas irrompem, subitamente, no meio da escuridão. A água do rio parece palpitar e goza de todas as cores apesar de haver sempre uma dominante. Às vezes é o verde, outras vezes o azul e outras um cinzento, da cor das nuvens no inverno e sempre, sempre dos múltiplos tons destas cores . Ela ainda se lembra de quando ali se viam golfinhos e, seguindo com os olhos alguma coisa que flutue na água, afigura-se-lhe tornar a vê-los fulgindo e brincando na distância . Mas gosta mais de observar o Tejo quando está ligeiramente encapelado e quase negro. Por vezes vê-se mergulhada nele, ali, na profundidade. A ondulação é, raras vezes, forte e perigosa, arrepia-se. Nessas alturas devia odiá-lo mas ama-o. Ele tem de ter cuidado com os sonhos. Na verdade é quando guia que tem mais tendência para sonhar. Gabava-se, mas apenas para si mesmo, de ser capaz de percorrer assim longas distâncias sem perder a atenção ao trânsito, como se fosse duas pessoas. Mas uma vez ia sofrendo um grande desastre. Valeu-lhe que o terreno junto à estrada era pouco acidentado. Agora tem mais cuidado e cantarola, à s vezes sem alegria, só para não sonhar ou para sonhar menos profundamente. É um homem alto, de testa larga, de cabelos castanhos escuros bastante ondulados, bem constituÃdo apesar de um ligeiro traço de fragilidade na maneira como une os lábios deixando-os entreabertos, o que também pode ser interpretado como um rasgo de sensualidade... ou de intelectualidade, sei lá. Não se vêem muito, os dois, de dia porque o horário dele é muito irregular. Na verdade fica muitas vezes alguns dias fora de casa nas suas viagens pela Europa. E à noite, quando ele dorme em casa, amam-se e dormem muito; ele em especial, porque fora de casa dorme sempre muito mal. Mas amar-se, amam-se a todas as horas do dia mesmo quando não estão na presença um do outro. Isto digo-o eu, assim, porque sou...escritor vá lá, mas eles nunca o disseram um ao outro desde que vivem juntos. Nem precisam. Basta reparar como se olham. Como ele a olha quando ela se zanga. Como ela o olha quando ele a olha porque ela se zanga. Mas esta estória que julgarÃeis, talvez um tanto enojados, cor-de-rosa, tem um imenso contratempo, na verdade uma pequena tragédia - e por isso a aproveitei como tema da minha novela, só para não vos aborrecer ! A questão é esta - custa-me um pouco dizê-lo, porque era segredo - : Eles não podem ter filhos. Demorou vários anos a descobrirem isso. E também levou muito tempo a descobrir de quem era a culpa - pois foi como culpa que eles encararam o facto. Ao princÃpio foi atribuÃda à mulher, só porque era mulher. E andou ela pela via-sacra das consultas, dos exames e dos testes médicos, até que se concluiu que a causa não estava nela. Foi então a vez dele mas só com muita paciência conseguiu, ela, convencê-lo a examinar-se. Pois não sabia ela muito bem como a ele nada lhe faltava para ser homem? Mas por fim, lá foi. E uma vez que tinha resolvido ir, persistiu até ao fim, embora alguns dos exames tivessem sido tão ultrajantes que só o muito amor pela mulher o ajudou a suportá-los. E, passados alguns longos dias, veio finalmente a sentença. A causa estava realmente nele pois, dizia o papel, os espermatozóides não tinham capacidade reprodutora. Que tolice, pensou ele ao princÃpio. Mas logo entendeu a explicação que lhe foi dada e um grande desgosto instalou-se no seu coração. Ela ainda sofreu mais porque lhe pareceu necessário ocultar-lhe o seu desgosto para poder consolá-lo. E não pensaram imediatamente, em remediar a situação. Continuavam a amar-se muito mas deixaram de ser brincalhões como até aÃ. Deixaram de falar sem sentido aparente como costumavam e passaram a remoer, em silêncio, a sua desventura. Mas ela só aparentava tristeza quando estava sozinha. Quando estava com ele fingia, sem muito êxito, que nada mudara. Até que um dia ...
Geraldes de Carvalho
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