damasco
Membro da Casa
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Frase é uma palavra. Palavra não é uma frase.
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« em: Maio 22, 2008, 22:57:01 » |
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Na procissão, Laurinda vestia de Nossa Senhora do Lago, rosas têxteis carmim cosidas ao regaço, mãos abertas, a mostrar os despojos de forma despojada, face Ãnclita, aguda ao chão, talvez uns 60 graus, cabeça enfeitada de coroa forjada a plástico dourado, vestes solenes, veludo vermelhão, linho virginal e sapatos pretos feitos ovelhas negras no rebanho da indumentária. As senhoras que alugam os fatos não lhes dedicam espaço na banca. Alugam apenas fatos para a procissão. Não há calçado. Por isso, invariavelmente, o Mártir Padroeiro, talvez aquele cuja vestimenta seja a mais propensa à constipação e à gripe, acabe sempre enriquecido por colantes, mais ou menos discretos, e botins. Os miúdos vão pelas mãos das mães de lenço branco, algumas, na cabeça. O padre Abel, enfiado na dalmática, sorri caridosamente para as beatas que, ainda noutro dia, acercando-se-lhe da mão, o deixaram de cuspo de naftalina, sobrolho franzido, esgar disfarçadamente contrafeito. O pálio sempre protege, pelo menos uma nesga, do cortante frio de norte, aquele que misteriosamente quebra na altura em que os foguetes, deitados pela andrajosa mão de HermÃnia, conhecida como exemplar único e irrepetÃvel de fogueteira, anunciam a saÃda da capela. Na procissão avançavam lenta e vagamente em direcção ao lago como se saboreassem cada segundo, sugando o prazer de quem rouba tempo a um relógio ciumento. Entre a procissão e a muralha de quem assiste há uma cisão de dimensões. O espaço e o tempo dentro da procissão são de espécies diferentes. Apenas o nota, caso esteja muito atento, quem atravessa a fronteira. Do lado de dentro, o tempo corre bastante mais lentamente, até o cheiro parece de uma alturas imemoráveis, daquelas que permanecem agarradas à memória arquivadas sem data. E Laurinda passou, concentrada em ser Nossa Senhora do Lago. No momento em que o pálio passou, Einstein bem tinha razão, o tempo e o espaço curvaram-se: o padre, de olhar afundado no chão, talvez a contar as pedras na calçada, talvez a pedir a Deus uma renovação da sacristia, ainda repassada com cheiro de frangos, desperta na tarde fria um breve ensaio de genuflexão na assistência. Os quatro ajudantes, todos irmãos, dois deles gémeos com um sinal em forma de abóbada manuelina nas faces esquerda e direita, José Abóbada e Manuel Abóbada, respectivamente, o outro, o do monco abobado ao nariz, Pedro Abóbada e Abelardo Abóbada, a marchar como se trotasse um corcel, sempre a tropeçar na bainha descaÃda das calças, o único sem referências a abóbadas na descrição, mas a quem só o fardo do nome próprio lhe pesa quanto baste, sustentam-lhe o dossel pelas varas. A irmã de Laurinda, Carminda, precisa como um fuso, acompanha-lhe os passos, os olhares e a pose. E ela atreve-se a olhar para fora do mundo da procissão. Os olhos são baços, vidro fosco nas portas que dão para a rua: deixam passar a luz mas não se sabe o que vai dentro. Depois de passar a procissão, restou o rosmaninho e o alecrim pisado, as flores brancas de jarro transformadas em castanho-mascavado, as pétalas estilhaçadas em pedaços de cor. O baço dos olhos de Laurinda ficou cravado como um dardo doentio na memória de quem a viu. A chama que mantém as pessoas vivas via-se nela vacilante, anelada por uma brisa morna em contraste com o vento frio que zurzia nas orelhas. Seis meses depois, a chama agonizava misturada no sufoco do Verão.
As escadarias que sempre pareceram enormes, talhadas para serem escaladas apenas por gigantes, eram agora visitadas por gente que saÃa e entrava. Tia Glória era a guia e a protectora de Gabriel. Talvez isso lhe fizesse preencher uma lacuna a que a escassez de pretendentes a tinha votado - os poucos tinham sido prontamente afastados no momento em que se mostravam mais atrevidos, sublinhe-se. Levava-o pela mão, ensinava-lhe a pose do andar, o jeito de cumprimentar, a forma de olhar; tal como ela fazia. O miúdo estava insidiosamente a ser transformado na sua própria sombra. - Menina Glória, melhor altura seria… Antunes embaraçou-se sem conseguir encontrar o fim da frase. De mãos enfiadas na farpela, esforçava o vocabulário sem sucesso. A mão direita saiu-lhe do bolso desajeitado das calças e orientou-se para a tia em concha de cumprimento. A tia espreguiçou-lhe a mão flácida. - Assim é… - Deve ser coisa bexigosa, menina. Está ali como uma criança ingénua… Glória, na referência a crianças, puxou, já cambaleante, o lenço xadrez da bolsa preta e deu dois passos desequilibrados à retaguarda enquanto lhe largava caprichosamente a mão. Como num filme em câmara lenta, deixou-se despenhar nos braços de Antunes. Num ápice, Glória era rodeada pelos braços de Antunes que a ajudava em suada surdina, enquanto, mais ao longe, quatro mulheres miravam boquiabertas o acontecimento. Glória arfava, o peito em vaivém, quase a estoirar os botões forrados em tecido xadrez. À custa do desmaio da tia, Gabriel escapuliu escadas acima e entrou na casa. O chão forrado a tábuas de pinho, nas quais minúsculos olhos pretos de madeira espreitavam curiosos, gemia baixinho debaixo das calculadas passadas. Depois de passar por dois grandes corredores, seguindo o sussurro das récitas, chegou ao quarto onde Laurinda ardia em febre. Acima da cama estava pendurada uma imagem em que um anjo, auréola dourada e asas grandes, protegia duas crianças com cordeiros brancos de braçado; mais atrás, um rio mostrava-se traiçoeiro e violento. Na cama de ferro, olhos fechados e sono inquieto, Laurinda era observada pela irmã, agulhas de croché em frenesim, e duas ou três visitas de ocasião que lhe tinham perfumado o quarto de pêssegos e silêncio. Carminda acenou-lhe levemente a reconhecer a presença. Lá fora, Antunes recolhia o elogio de Glória: que homem atento ele era, que força tinha, que jeito para lidar com imprevistos, que cuidados com os precisados! Antunes corou e compôs a roupa. Ali ao lado, a curta assistência enlutada, desdobrava-se em segredinhos. - As senhoras precisam de alguma coisa? – Perguntou-lhes Antunes. Prontamente debandaram, quatro gaivotas bicudas perseguidas por uma onda forte, saias em sussurro, sapatos rasos a soltar pó à passagem. - A Menina está bem? - Por que insistes em tratar-me por menina, Edmundo? - Porque é assim que deve ser, menina Glória… Edmundo de Guimarães Antunes cofiou nervosamente o escasso bigode que a natureza lhe confiou. Nem a convicção adolescente de que iria crescer forte e ruivo como o cabelo demoveu a biologia de desempenhar o seu papel, desta vez pouco generoso. Acabou por resignar-se à carreira de formigas rabudas que lhe vagavam pela cara junto ao lábio superior.
(A continuar. Provavelmente...)
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