vitor
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Olá amigos.
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« em: Outubro 31, 2008, 11:36:23 » |
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Era já tarde demais. Tarde, embora, creio eu, nunca seja tarde para pensamentos ou ideias que por dentro de nós nos divaguem irrisórios, creio eu, e entenderás, acredito, que quando o digo, é na certa, pensamento sério, pois, penso sempre nessa diáspora, assim, como transmito a forma dos meus pensamentos. Entro pela casa suave, rodeada de fresco e ao fundo, na varanda coberta por uma janela de ferro, vejo a tia LuÃsa, debruçada a ecos lestos a cozinhar uma roupa de choupana fria, e tu, encaracolada, velha, de rosto feliz, como é natural em ti, continuas sem sequer te aperceberes, que a porta fora arrombada pelo vento que eu trazia, dentro do meu sono. Pareceu, sei lá, ter ouvido, de longe, muito, mesmo muito longe: - Quem está aÃ? Foi do vento, vindo seco que a tua alma sentiu, e eu, nada disse, pois nada poderia fazer, nem queria, segui para dentro do quarto que normalmente guardas para mim, sempre que aà vá, embora das outras vezes diga sempre que vou, desta vez, apenas a vontade vandalizou-me e perdi o nexo e nada disse e fui, por isso cheguei e entrei, sem querer dizer-te que aà estava, sabia que, acredito, te irias aperceber disso, tarde ou cedo, mas na mesma, tudo seria normal, não irias zangar-te, tão habituada a mim estavas que todo o erro por mim cometido seria atenuado por isso. Como sempre erro, sei-o e entendo o que sou, vago na vida e na forma como me apresento aos demais, embora me considere um justo amigo, sou disperso e sigo assim, as plataformas inócuas da vida a que me predisponho. Ainda, e mais uma vez, a tia LuÃsa, da varanda vazia de tanto silêncio, onde só ela consigo só, a preenche e conforta, na luz sóbria dum sol dessa tarde ainda, cortinas abaixadas, evita assim o contacto directo com um sol que, tendo ela uma pele sensÃvel, evita senti-lo, era ainda quente. Qualquer coisa como quatro horas da tarde. - Raios me partam se não senti que alguém abriu a porta!... Levantou-se, parou junto da porta, que liga a varanda à sala, espreitou, nada terá visto, de novo voltou e se sentou na sua maquina de cozer, oliva, lembro-me bem, antiga, pois foi a que o tio Noco, falecido a uns anos no hospital de S. João, comprou, pouco após termos chegado do ultramar, continuou a sua leve e densa tarefa, tinha clientes, amigas e pessoas, que de quando em vez lhe vinham a porta bater, pediam que ela lhes cozesse a bainha, a dobra, ou a gola da camisa do marido, mais magro, mais gordo, coisas próprias da velhice, sei como isso é. - Marco? Perguntava ela, para si mesma, num gesto sibilante e calmo, como normal nela, nunca me iria incomodar, embora sabendo nunca, que numa hora daquelas poderia ser eu, pois, nunca lhe passaria pela cabeça que era exactamente eu, de longe, chegava, cansado e farto de tantos assobios escondidos, escondia-me eu ali, na sua casa contida e duma calma que fazia impressão, mas adorável, e ali, adorava eu estar, nos momentos em que precisava tanto de um conforto indiferente e longÃnquo, sei como é ela, meiga e carinhosa mas nunca se chega a dizer ou pedir, o que quer que seja. Devagar, fui apreciando, voraz e doloroso, os quadros espalhados pelo vento, lado após lado, pelos assombros de lado a lado, onde, creio ainda, terem sido colocados pelo tio. - Um dia serão teus, meu rapaz. Ouvia por dentro esta voz de memória, que continuava solene, ocupando-me completamente, escutava, não sei bem de onde me vinha, não entendia por que razão me fazia entender o motivo dos quadros ali, e eu continuava a olha-los, de trás para a frente, num corrupio sôfrego mas deliciosamente calmo, a recordar antigas cantigas, velhos pastores da kitanda, cidade onde haviam estado, quando em Ãfrica, a tia LuÃsa, de cesto à cabeça, vendia pasteis frescos para exacerbar a vida, como o faz aqui, cidade mais remota e moderna, num pós colonial, requisitar mÃseros tostões para a quotidiana refeição de todos os dias, pois, tanto quanto sei, o tio Noco nunca disso quis saber, e mais, violentava a sua cabeça quando à mesa lhe faltava o pão, mesmo que fosse para acompanhar o petisco. - Parece que estou a ficar maluca, possa! Ria perdida num eco que se fundia com o fim da sala, logo ali, bem juntinha a varanda, de paredes retocadas e mal ajeitadas, o corredor seco, escuro, roxo, creio eu, era a cor antiga da casa que a ela não pertencia, alugada a uns emigrantes em França e raramente cá vinham, logo, nunca se preocupavam com os reparos necessários. - Afinal, além de ver mal como já vejo, ouço demais, como me parece estar a ouvir agora. Ai velhice, ai…, hás-de levar-me para o buraco do meu velho, mau que era, e ate no fim da vida me há-de continuar a maltratar. Já faltou mais, mais dia, menos dia, estarei, estarei com ele novamente, na vida de finados desta vida, a cantarolar cânticos de quem já estava farta, e repetiria, farta. Eu, ainda na gira vazia pelos cantos da casa, via e revia os nadas dela, como eu, escuros os corredores, passeava-me por entre as panelas e bandeiras da guerra colonial, pelos quadros de quem nunca saberei, e saciava a miserável displicência, ali, comigo, a deambular vagamente pelo corredor, rua, perÃodos que nem sei ainda, vendo bem e mal ao mesmo tempo que me diziam eles, num percevejo alongado pelo chão varrido, talvez, muito aciana ela, pois a quantos anos sabia desses seus hábitos taciturnos, eram de tal maneira vicio, que mesmo depois de limpos, eram novamente limpos, até a cal cair das paredes. - Marco, estás aÃ? Velha a casa, entrava por todos os lados o cume quente do dia, a luz vadia da rua, como eu, nos corredores e quartos e sala e até mesmo o WC, claro como a rua por onde andei até aqui me sentar. Tudo eu conseguia ver, observar, todos os cantos, os dali, os da memoria, o cemitério da cidade nos remotos pensamentos da minha cabeça, ali, o fogão sem gás, a chama inventada, as mãos do tio Noco, chamam-me e sigo, como ele, sem que ele me veja, sem que eu o veja, ambos numa conversa crispada de nadas reais, direi porque…, sei que ele faleceu a muitos anos e eu não vivo a tantos assim, mas, podemos no mÃnimo conversar sobre o tempo em que ainda lá estava ele, havia um quintal de pasmos suaves, vasos e flores ou plantas, sei lá, qualquer coisa espalhada no varandim seco de folhas espalhadas por breves instantes, sei que a tia LuÃsa não lhes dará muito tempo de vida ali, vicio que tem ela meu Deus, linda, velha, cansada mas fresca a debote, corre e movimenta-se numa agilidade que me parece um ser de outro mundo. Como a adoro, meu Deus. Os dois, no quintal ténue e sobre a fresca da tarde, num silêncio tÃpico entre quem nunca se vê, a conversa assola e vamos, como quem soçobra o antigamente num arrepio vulgar, ambos ali, de mãos estendidas a tarde e recomeçávamos, como nunca o fôramos antes. - Queria que viesses aqui morar, sabes? - Quem me dera tio! - Quando quiseres, é tua a vida desta casa. - Agradeço. Quando quis morrer e ele soube, logo se apressou a chamar-me, gritando do fundo da vida que tinha, pedindo e apelando, ao resto da famÃlia, ouvia e ninguém entendia, creio, ninguém me dizia que dali vinham apelos à força, à vida, que nunca lutaria eu pois não tinha, sei, essa vontade. - Sabes que sei tio, desisti de viver a uns anos, sabes, não sabes? - O lugar que cada um tem esta na mesma lá, onde nós nos descobrimos, onde queremos ser na vida o que na vida formos, deixa-te disso meu caro, vem e pronto, que interessa teres desistido, nessa altura, e já são longos os anos, longos mesmo, lembro-me bem, quando a tua mãe em desespero me telefonou a chorar que ia perder-te. Sabes que lhe disse? (...)
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