EscritArtes
Maio 04, 2024, 01:36:54 *
Olá, Visitante. Por favor Entre ou Registe-se se ainda não for membro.

Entrar com nome de utilizador, password e duração da sessão
Notícias: Regulamento do site
http://www.escritartes.com/forum/index.php/topic,9145.0.html
 
  Início   Fórum   Ajuda Entrar Registe-se   *
Páginas: [1]   Ir para o fundo
  Imprimir  
Autor Tópico: 1 -PROVAVELMENTE NINGUEM  (Lida 2068 vezes)
0 Membros e 1 Visitante estão a ver este tópico.
vitor
Membro da Casa
****
Offline Offline

Sexo: Masculino
Mensagens: 291
Convidados: 0


Olá amigos.


« em: Outubro 31, 2008, 11:36:23 »

Era já tarde demais. Tarde, embora, creio eu, nunca seja tarde para pensamentos ou ideias que por dentro de nós nos divaguem irrisórios, creio eu, e entenderás, acredito, que quando o digo, é na certa, pensamento sério, pois, penso sempre nessa diáspora, assim, como transmito a forma dos meus pensamentos.
Entro pela casa suave, rodeada de fresco e ao fundo, na varanda coberta por uma janela de ferro, vejo a tia Luísa, debruçada a ecos lestos a cozinhar uma roupa de choupana fria, e tu, encaracolada, velha, de rosto feliz, como é natural em ti, continuas sem sequer te aperceberes, que a porta fora arrombada pelo vento que eu trazia, dentro do meu sono.
Pareceu, sei lá, ter ouvido, de longe, muito, mesmo muito longe:
- Quem está aí?
Foi do vento, vindo seco que a tua alma sentiu, e eu, nada disse, pois nada poderia fazer, nem queria, segui para dentro do quarto que normalmente guardas para mim, sempre que aí vá, embora das outras vezes diga sempre que vou, desta vez, apenas a vontade vandalizou-me e perdi o nexo e nada disse e fui, por isso cheguei e entrei, sem querer dizer-te que aí estava, sabia que, acredito, te irias aperceber disso, tarde ou cedo, mas na mesma, tudo seria normal, não irias zangar-te, tão habituada a mim estavas que todo o erro por mim cometido seria atenuado por isso.
Como sempre erro, sei-o e entendo o que sou, vago na vida e na forma como me apresento aos demais, embora me considere um justo amigo, sou disperso e sigo assim, as plataformas inócuas da vida a que me predisponho.
Ainda, e mais uma vez, a tia Luísa, da varanda vazia de tanto silêncio, onde só ela consigo só, a preenche e conforta, na luz sóbria dum sol dessa tarde ainda, cortinas abaixadas, evita assim o contacto directo com um sol que, tendo ela uma pele sensível, evita senti-lo, era ainda quente. Qualquer coisa como quatro horas da tarde.
- Raios me partam se não senti que alguém abriu a porta!...
Levantou-se, parou junto da porta, que liga a varanda à sala, espreitou, nada terá visto, de novo voltou e se sentou na sua maquina de cozer, oliva, lembro-me bem, antiga, pois foi a que o tio Noco, falecido a uns anos no hospital de S. João, comprou, pouco após termos chegado do ultramar, continuou a sua leve e densa tarefa, tinha clientes, amigas e pessoas, que de quando em vez lhe vinham a porta bater, pediam que ela lhes cozesse a bainha, a dobra, ou a gola da camisa do marido, mais magro, mais gordo, coisas próprias da velhice, sei como isso é.
- Marco?
Perguntava ela, para si mesma, num gesto sibilante e calmo, como normal nela, nunca me iria incomodar, embora sabendo nunca, que numa hora daquelas poderia ser eu, pois, nunca lhe passaria pela cabeça que era exactamente eu, de longe, chegava, cansado e farto de tantos assobios escondidos, escondia-me eu ali, na sua casa contida e duma calma que fazia impressão, mas adorável, e ali, adorava eu estar, nos momentos em que precisava tanto de um conforto indiferente e longínquo, sei como é ela, meiga e carinhosa mas nunca se chega a dizer ou pedir, o que quer que seja.
Devagar, fui apreciando, voraz e doloroso, os quadros espalhados pelo vento, lado após lado, pelos assombros de lado a lado, onde, creio ainda, terem sido colocados pelo tio.
- Um dia serão teus, meu rapaz.
Ouvia por dentro esta voz de memória, que continuava solene, ocupando-me completamente, escutava, não sei bem de onde me vinha, não entendia por que razão me fazia entender o motivo dos quadros ali, e eu continuava a olha-los, de trás para a frente, num corrupio sôfrego mas deliciosamente calmo, a recordar antigas cantigas, velhos pastores da kitanda, cidade onde haviam estado, quando em Ãfrica, a tia Luísa, de cesto à cabeça, vendia pasteis frescos para exacerbar a vida, como o faz aqui, cidade mais remota e moderna, num pós colonial, requisitar míseros tostões para a quotidiana refeição de todos os dias, pois, tanto quanto sei, o tio Noco nunca disso quis saber, e mais, violentava a sua cabeça quando à mesa lhe faltava o pão, mesmo que fosse para acompanhar o petisco. 
- Parece que estou a ficar maluca, possa!
Ria perdida num eco que se fundia com o fim da sala, logo ali, bem juntinha a varanda, de paredes retocadas e mal ajeitadas, o corredor seco, escuro, roxo, creio eu, era a cor antiga da casa que a ela não pertencia, alugada a uns emigrantes em França e raramente cá vinham, logo, nunca se preocupavam com os reparos necessários.
- Afinal, além de ver mal como já vejo, ouço demais, como me parece estar a ouvir agora. Ai velhice, ai…, hás-de levar-me para o buraco do meu velho, mau que era, e ate no fim da vida me há-de continuar a maltratar. Já faltou mais, mais dia, menos dia, estarei, estarei com ele novamente, na vida de finados desta vida, a cantarolar cânticos de quem já estava farta, e repetiria, farta.
Eu, ainda na gira vazia pelos cantos da casa, via e revia os nadas dela, como eu, escuros os corredores, passeava-me por entre as panelas e bandeiras da guerra colonial, pelos quadros de quem nunca saberei, e saciava a miserável displicência, ali, comigo, a deambular vagamente pelo corredor, rua, períodos que nem sei ainda, vendo bem e mal ao mesmo tempo que me diziam eles, num percevejo alongado pelo chão varrido, talvez, muito aciana ela, pois a quantos anos sabia desses seus hábitos taciturnos, eram de tal maneira vicio, que mesmo depois de limpos, eram novamente limpos, até a cal cair das paredes.
- Marco, estás aí?
Velha a casa, entrava por todos os lados o cume quente do dia, a luz vadia da rua, como eu, nos corredores e quartos e sala e até mesmo o WC, claro como a rua por onde andei até aqui me sentar. Tudo eu conseguia ver, observar, todos os cantos, os dali, os da memoria, o cemitério da cidade nos remotos pensamentos da minha cabeça, ali, o fogão sem gás, a chama inventada, as mãos do tio Noco, chamam-me e sigo, como ele, sem que ele me veja, sem que eu o veja, ambos numa conversa crispada de nadas reais, direi porque…, sei que ele faleceu a muitos anos e eu não vivo a tantos assim, mas, podemos no mínimo conversar sobre o tempo em que ainda lá estava ele, havia um quintal de pasmos suaves, vasos e flores ou plantas, sei lá, qualquer coisa espalhada no varandim seco de folhas espalhadas por breves instantes, sei que a tia Luísa não lhes dará muito tempo de vida ali, vicio que tem ela meu Deus, linda, velha, cansada mas fresca a debote, corre e movimenta-se numa agilidade que me parece um ser de outro mundo. Como a adoro, meu Deus. Os dois, no quintal ténue e sobre a fresca da tarde, num silêncio típico entre quem nunca se vê, a conversa assola e vamos, como quem soçobra o antigamente num arrepio vulgar, ambos ali, de mãos estendidas a tarde e recomeçávamos, como nunca o fôramos antes.
- Queria que viesses aqui morar, sabes?
- Quem me dera tio!
- Quando quiseres, é tua a vida desta casa.
- Agradeço.
Quando quis morrer e ele soube, logo se apressou a chamar-me, gritando do fundo da vida que tinha, pedindo e apelando, ao resto da família, ouvia e ninguém entendia, creio, ninguém me dizia que dali vinham apelos à força, à vida, que nunca lutaria eu pois não tinha, sei, essa vontade.
- Sabes que sei tio, desisti de viver a uns anos, sabes, não sabes?
- O lugar que cada um tem esta na mesma lá, onde nós nos descobrimos, onde queremos ser na vida o que na vida formos, deixa-te disso meu caro, vem e pronto, que interessa teres desistido, nessa altura, e já são longos os anos, longos mesmo, lembro-me bem, quando a tua mãe em desespero me telefonou a chorar que ia perder-te. Sabes que lhe disse? (...)
Registado
Goreti Dias
Contribuinte Activo
*****
Offline Offline

Sexo: Feminino
Mensagens: 18616
Convidados: 999



WWW
« Responder #1 em: Outubro 31, 2008, 21:08:09 »

Uma escrita de qualidade!
Registado

Goretidias

 Todos os textos registados no IGAC sob o número: 358/2009 e 4659/2010
vitor
Membro da Casa
****
Offline Offline

Sexo: Masculino
Mensagens: 291
Convidados: 0


Olá amigos.


« Responder #2 em: Novembro 01, 2008, 11:32:38 »

Obrigado Goreti, um abraço.
vitor burity
Registado
vitor
Membro da Casa
****
Offline Offline

Sexo: Masculino
Mensagens: 291
Convidados: 0


Olá amigos.


« Responder #3 em: Novembro 02, 2008, 12:02:41 »

Obrigado Dite, e um abraço imenso.
vitor burity
Registado
Páginas: [1]   Ir para o topo
  Imprimir  
 
Ir para:  

Recentemente
[Maio 02, 2024, 23:01:07 ]

[Maio 02, 2024, 22:33:10 ]

[Maio 02, 2024, 22:32:40 ]

[Abril 30, 2024, 14:23:56 ]

[Abril 03, 2024, 19:27:07 ]

[Março 30, 2024, 19:58:02 ]

[Março 30, 2024, 19:40:23 ]

[Março 17, 2024, 22:16:43 ]

[Março 12, 2024, 00:13:37 ]

[Março 11, 2024, 23:55:47 ]
Membros
Total de Membros: 792
Ultimo: Leonardrox
Estatísticas
Total de Mensagens: 130136
Total de Tópicos: 26760
Online hoje: 736
Máximo Online: 964
(Março 18, 2024, 08:06:43 )
Utilizadores Online
Users: 0
Convidados: 748
Total: 748
Últimas 30 mensagens:
Novembro 30, 2023, 09:31:54
Bom dia. Para todos um FigasAbraço
Agosto 14, 2023, 16:53:06
Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
Boa tarde!
Janeiro 01, 2023, 20:15:54
Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
Março 22, 2021, 20:50:10
Boa noite feliz para todos.
Março 17, 2021, 15:04:15
Boa tarde a todos.
Março 16, 2021, 12:35:25
Olá para todos!
Março 13, 2021, 17:52:36
Olá para todos!
Março 10, 2021, 20:33:13
Boa feliz noite para todos.
Março 05, 2021, 20:17:07
Bom fim de semana para todos
Março 04, 2021, 20:58:41
Boa quinta para todos.
Março 03, 2021, 19:28:19
Boa noite para todos.
Março 02, 2021, 20:10:50
Boa noite feliz para todos.
Fevereiro 28, 2021, 17:12:44
Bom domingo para todos.
Powered by MySQL 5 Powered by PHP 5 CSS Valid
Powered by SMF 1.1.20 | SMF © 2006-2007, Simple Machines
TinyPortal v0.9.8 © Bloc
Página criada em 0.104 segundos com 28 procedimentos.