jcbrito
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« em: Junho 20, 2008, 00:24:39 » |
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Café, tomas? Uns seis por dia e hoje ainda só vou no terceiro, respondeu, enquanto acendia um cigarro. Fazes mal, é muita cafeína para uma mulher só. Depois do ataque, nunca mais tomei, agora peço um descafeinado e só a seguir ao almoço. E fumar, então, nem falar. Ó Manel, uma mulher também tem que ter os seus vícios, não achas? Ou achas que só é dado aos homens? Achava, é evidente, mas não oficializou o achamento, que reservou só para si. Olha se a Bina levantasse cabelo daquela maneira… quem usa calças lá em casa, afinal? Já não basta telenovela das nove, pouca-vergonha em horário nobre, programa de rialiti chou que é só péssima influência pr’ó mulherio… Há uns tempos, um ou dois anos, veio com a conversa da emancipação, do modernismo. Qual quê! Já temos homem em casa, um e meio, aliás, o Custódio também entra na contagem. Mas o que queres? O que queria deu-lho a entender, mais tarde, com o Cristo na parede, por cima da cama, como testemunha. Para quebrar a rotina, a monotonia de 14 anos de casamento. Não me podes dar sempre peixe, homem. Às vezes, apetece-me marisco. Exacto, e camarão da costa, pelos vistos, não servia, tava com apetite desmesurado a mulher, lagosta, lavagante, uma cataplana inteirinha que tive que lhe servir. Nunca a tinha visto naquele estado. Levava mesmo jeitos de uma das meninas da Felisberta, dona de buate de alterne no cimo da serra, mas buate de categoria, não era qualquer um que entrava. Só gente de classe, empresário de sucesso, político de ribalta e jogador barra dirigente barra árbitro de futebol. A Felisberta, a gente referia-se a ela, na brincadeira, Feliz cu’ela aberta, não levem a mal, sim, tinha os melhores pitéus das redondezas, de todas as cores, tamanhos e feitios. Um gajo chegava lá e preenchia a fichinha, onde, sem falsos pudores, quem mentia ou não os tinha no sítio para escrever os pratos de que gostava mesmo só perdia com o acanhamento. Era uma espécie de cardápio, já com os pratos seleccionados, entrada, prato principal e sobremesa. E, melhor ainda, do género teste americano, que era só pôr a cruzinha. Um tipo ali, à entrada, despia o casaco e a vergonha. Era serviço garantido e sigiloso. E variado. Numa inovação, que haveria de fazer história, a madame criou quartos temáticos: o pavilhão chinês, as delícias turcas, o pavilhão dos descobrimentos, a sala dos alpes, que era a minha preferida, onde a Haidi, de longas tranças loiras, mulherão de quase um metro e oitenta, difícil de escalar, conseguia tocar o tirolês em qualquer gaita. Verdadeiro fenómeno! Um dia, a Feliz cu’ela aberta, desculpem é o hábito, a Felisberta pôs um cartaz a dizer serviço garantido ou dinheiro devolvido. Era marquetingue! Percebia mesmo da poda a mulher. Depois, ainda foi mais arrojada: se fizerem o mesmo que nós fazemos noutro lado pelo preço que levamos, pagámos o que cobrámos a dobrar! Nunca ninguém se queixou, meninos! A não ser, um dia, o filho do presidente da Câmara, mas esse era um grande paneleiro é o que ele é e só foi lá a muita insistência do pai. No dia seguinte, regressou com um amigo, vou fingir que acredito, só por causa do respeito que tenho e devo ao pai, todo trinques, também, reclamar que já tinha sido muito mais bem atendido noutro sítio. Onde, doutor xis?, _não vou revelar o nome dele, não por causa do maricas, tá-se mesmo a ver, mas por causa do desgraçado do senhor presidente_ quis saber a Felisberta, olhar meio de desafio, meio de gozo com a caricata situação, mãos na cinta. Isso não é da sua conta, minha senhora, retorquiu, todo lampeiro, pondo as mãos na cinta com igual fineza de gestos. A mulher, que era bem mais refinada do que o paneleiro, devolveu-lhe o dinheiro em dobro, como anunciava o cartaz. Só que imediatamente quintuplicou o investimento com um telefonema directo ao senhor presidente, dando conta do infeliz episódio sucedido. Desfez-se em desculpas o pobre homem, não devia ter insistido, a culpa foi minha, Felisberta, eu queria tanto fazer dele um homem. Mas não te preocupes. Fizeste muito bem em devolver-lhe o dinheiro. Eu compenso-te. Conheces bem a minha generosidade, Bertinha. Coitado, deve doer ter um filho assim. Deus me livre e guarde de ter um filho rabêta! Mas o Custódio é homem, na escola anda sempre acompanhado de raparigas. Nem gosta de jogar futebol, como os outros totós, para estar à beira delas! Sabe longo o miúdo. Elas não o largam, vêm estudar com ele, vêm-no buscar para ir ao cinema, vêm-no buscar para ir às compras ao chope. Ganda Custódio, vai ser garanhão como o pai. Quem não perdia oportunidade era a Felisberta, mulher de olho para o negócio, empreendedora, tirou ainda mais partido do sucedido. Falou com o amigo do doutor xis e ofereceu-lhe trabalho. Queria inovar, variar o cardápio. O gajo aceitou e, passadas umas semanas, foi inaugurado, com pompa e circunstância, o pavilhão dos a_cu_sados. Parece que foi um sucesso. E reitero o parece porque, evidentemente, nunca lá fui. Nem tenciono ir, livra! Ora nestes desmandos, Bininha parecia transmutada, possessa por espírito de menina falecida de romance de Enri Miler, Consalique ou Balzaque. Todavia, não, era a cônjuge em pessoa, como pôde verificar ineloco quando ela quis fazê-lo com a luz acesa. Gostar, gostou. Mas não podia admiti-lo, não é assim? Para mulher, homem honrado escolhe uma de juízo, boa esposa, excelente mãe para os filhos, melhor governanta da casa. Para o resto, um homem tem, neste caso concreto, as meninas da Felisberta. A culpa é da televisão que põe ideias erradas na já de si fraca cabeça do mulherio. Depois, pensam que a vida é fita de cinema onde os bons ganham e os maus são castigados… A Maria de Lurdes era caso perdido. Fumava, tomava café, dizia palavrões e até galava jeitoso que passasse no pedaço, bem topou enquanto almoçavam. Mas tinha desculpa, era do seu sangue. Estava escrito que os genes dos Azevedos haveriam de ser todos marca caraças. Isso e com premonição estranha para mundo paralelo. Dom ou maldição, alternava o seu pensamento entre um e outra, consoante a ocasião, mas fora de questão era o poder da irmã, herdado certamente da mãe, costureira oficial da aldeia, não havia noiva que não fosse ali às provas do vestido, véu e grinalda, com ele, já espigadote, a espreitar, por detrás dos pesados cortinados de veludo azul-grenã. Muitas virgens despiram-se pela primeira vez diante daqueles olhos verdes, matreiros, com que Neca Picheleiro enfeitiçou Bininha Cosme de Castro, pós-matrimónio, tu samplemãn, Bininha Azevedo. Para além do mister do corta e cose, a matriarca era consultora sentimental nas horas vagas. Bom, deixemo-nos de rodeios: a sua fama era tanta que se espalhava pelas aldeias vizinhas, galgava montanhas e corria, célere como o vento, pelas veredas e sendeiros até Angueira, S. Joanico, Serapicos e mesmo Avelanoso. Não havia quem não conhecesse, de nome, pelo menos, a Carocha de Caçarelhos, que lia o futuro em entranhas de porco e folhas de chá, tinha remédio para males do corpo e do coração, mesinhas para raiva, padecimento de amor ou dor de corno. Um dia, um caso mal resolvido, marido chavelho e não manso, entrou casa dentro quando a que lhe jurou fidelidade para sempre comprava receita de levanta-o-pau, remédio santo _ou demoníaco, depende do ponto de visto_ que fazia viagra ou pau de Cabinda corar de vergonha. Já desconfiado, e como ele, graças a Deus, podia ter muitos defeitos, mas esse nem pensar, logo percebeu que aquilo não era chazinho para o seu bico. Somou dois mais dois e depressa lhe veio à cornadura o caminho que levava, direitinho à mansão do Juca Brasileiro, oitenta anos e mais alguns, onde a esposa servia como criada da casa. Escândalo feio que pôs Caçarelhos inteira em estado de sítio, berros e mais berros, que a culpa é da bruxa, que te anda a perder, mulher, etecera e tal e, a páginas tantas, ouve-se tiro de pistola e mais outro a silvar no ar de todo o povoado. Tudo cheio de Zé Valentão lá na aldeia, mas ninguém ousou abrir a porta e tirar a limpo o que tinha acontecido. Melhor ir à venda e ligar à gêéneérre da vila. Chegaram com ar circunspecto, bateram à porta e entraram. Resultado: dois mortos, a potencial adúltera e o pai, senhor Azevedo, que se tinha metido à liça para defender a mãe. Foi aí que os azevedos sobreviventes vieram para a cidade, deixando os poderes extra-sensoriais em Trás-os-Montes. Só que o fado tem muita força e desde criança que Maria de Lurdes começou a revelar-se diferente das outras crianças. Adivinhava coisas, tinha visões, fazia os outros verem coisas. Os dons de Neca Picheleiro ou não se tinham ainda manifestado ou eram mais virados para a natureza profissional, do género sorte na vida, mas nada que carecesse de explicação do além. Porém, fora dessa convicção no paranormal que nascera o repetente poliglota. Nela podia confiar. Mas não era segredo que se contasse a mais ninguém. Ninguém mesmo. Juras, Maria de Lurdes? Atão, segredo maior sabes tu de mim, rapaz! Desembucha, que estou morta por saber o que se passa. Baixou o volume de voz, esboçou aquela expressão que, se estamos na mesa ao lado, nos chama à atenção e nos põe a arder de curiosidade, e desembuchou.
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