Maria Gabriela de Sá
|
|
« em: Fevereiro 23, 2015, 19:23:42 » |
|
Há um tempo para tudo. Nascer em berço de oiro ou de palha, crescer na abundância ou à mÃngua até de afecto, viver a vida qual roda da fortuna à mercê da sorte ou do azar... Enfim, há tempo mesmo quando já não há outro tempo senão o de esperar um "a posteriori" de tudo, da casa de onde nos retiram, daquilo que se deixa rumo ao último ingresso e onde vive a senhora morte.
Mas, antes do ir sem volta, antes da libertação e quando a alma se livra das endemias do corpo encarcerado em si mesmo à mercê da decadência, vem ainda e quase sempre a última prova. É aquela que talvez nos devesse envergonhar, não fosse o nosso complicado dia a dia a desculpar-nos. É a Passagem pelo Depósito de Velhice. São os lares para a terceira idade, teoricamente criados com a melhor das intenções para o último dos fins.
Enfim!
Chamava-se Luciana no passado mas, no presente, dá até vontade de a tratar por Lucianinha. Agora parece mais do que criança, por causa do tino que já não tem e que lhe foi roubado por um tempo já demasiado longo que a deixou sem norte. Também já não sabe dar nem curtas e, muito menos, longas caminhadas.
Lucianinha, no presente, vive no poente de uma vida, agora completamente à margem da razão. Tem 92 anos.
Lucianinha, no passado Luciana, foi então mulher de nariz empinado, casada e sem outros filhos que não a sobrinha, a quem criou com amor de mãe. Morou numa casa com muitas janelas que, segundo ela, estaria assombrada, em zona chique onde reis e rainhas tinham veraneado. Era modista afamada e vestiu as senhoras da alta sociedade. Sobreviveu a muitas pessoas chegadas, mesmo à rapariga que criou como filha.
Depois de muitas voltas o mundo ter dado, o "genro", resolvera comprar por tuta e meia a casa onde Luciana morava e, após a morte da mulher, meteu lá o filho, um rapaz de vida sinistra que vestia o quarto de negro, no qual guardava uma caveira como se toda a sua vida fosse um ritual de morte. Diz-se agora que até batia à tia-avó... Fique-se com a dúvida sobre essa indignidade , para bem da nossa consciência... Nessa altura, Luciana era, já, Lucianinha...
Enfim!
Um dia Lucianinha não mais voltou a casa. Teve de ceder a um conluio tecido pelo “genro†e, no final do passeio daquele dia, desembocou num depósito de velhice onde um desconforto imenso se apoderou de mim quando a fui ver.
Numa sala grande, espalhados por todo o lado, viam-se cerca de trinta idosos, homens e mulheres, uns em cadeiras de rodas, outros de bengala, ainda outros deitados, esperando sem sequer o desejarem, muitos deles por já não terem razão, a Senhora que há-de vir...
A senilidade passeava impudica nos rostos de onde a carne já fugira, os gritos de alguns ecoavam nos ouvidos de todos sem que, por entre tantos corpos magros e esquálidos, alguém se atrevesse a soltar um queixume. Uma lassidão sem retorno fizera daquela grande casa o mais expressivo baluarte da decadência humana, a antecâmara do definitivo. E, observar tudo aquilo sem nada poder fazer por aquelas vidas semimortas devolvendo-as ao amor da famÃlia para o seu último sol de fim de tarde, dói que se farta.
Entretanto, enquanto os meus olhos se impressionavam e o meu coração contristava, olhando Luciana, agora Lucianinha, soltei um grito endémico, ao mesmo tempo que uma questão sem resposta me sacudia violentamente:
- Meu Deus, o que fizemos aos nossos velhos?!!!
Abril de 2001
|