A MINHA FILHA APAIXONOU-SE POR UM PRETO!

[Vóny Ferreira]

O que faço, amiga? A minha filha apaixonou-se por um preto, ele até é bom rapaz, bonitinho, trabalhador. É Brasileiro. Trabalha como segurança. Oh… aquela menina que tem os homens que quer aos seus pés, foi-se logo apaixonar por ele… - lamentou, Verónica para logo depois concluir.
- Não quero ver a minha filha casada com um preto, percebes?

Pela minha cabeça passam repentinamente imagens antigas. Regrido aos meus 9 anos de idade e vejo-me em Angola de novo, como se essa imagem me fosse trazida por uma espécie de nuvem a flutuar na minha memória. Nesses escassos segundos revejo o Domingos, o meu primeiro amigo de infância. Tinha 11 anos. Era preto e foi o meu primeiro grande amigo logo que cheguei àquelas terras sagradas pelos Deuses da natureza.
Vi-o sorrir-me, com o seus dentes mais brancos do que a neve, numa perspicuidade arrepiante, como se a sua alma flutuasse repentinamente na minha memória através daqueles imagens alcantiladas. A sua voz de fraga feliz lá estava… a incentivar-me. Enquanto eu agarrada a uma bicicleta enorme hesitava em pedalar.
- Não tem medo de andá… minina… eu ti insino a andá de bicicleta. Vem… eu insino minina com medo…- e ria-se, ria-se. Como se o sol brilhasse nos seus olhos límpidos. Eu, armada em borboleta anémica, lá subia para cima da bicicleta e zarpava com ele aos ziguezagues, imune à feridas inflamadas dos joelhos das primeiras quedas dessa bicicleta disforme.



Verónica acorda-me daquela espécie de letargia.
Percebes a minha inquietação não percebes?
- Não… não percebo. Isso é absolutamente descabido pensar assim…
- Dizes isso porque não passaste nunca pelo mesmo do que eu, senão…
- Não sejas ridícula… - a minha voz alterou-se e tive consciência da rudeza das palavras, por isso olhando-a nos olhos pedi-lhe de imediato desculpa.
Ela olhou-me de soslaio, como se estivesse a determinar inconscientemente se iria considerar aquelas minhas palavras ofensivas ou não. Mas Verónica sabia que eu sofria desse impulsivismo crónico que me leva muita vez a uma espontaneidade desconcertante.
- Eu sei como és… frontal. Mas contava com a tua compreensão porque como…
Interrompia abruptamente.
- Não tem sentido opores-te a esse amor. É o que tenho a dizer-te…. Verónica!

Sentia-me mesmo furiosa com ela porque jamais a imaginara tão preconceituosa e denunciando até alguma mesquinhez. Sempre vira aquela pessoa que estava à minha frente como alguém extraordinariamente afável. Liberal. Ao longo dos tempos em que esporadicamente íamos convivendo, mostrara uma abertura de espírito para a realidade da vida, absolutamente consentânea com os tempos modernos e com as mentalidades despoluídas.
Já nos basta para poluição, os mares, os rios, as florestas absolutamente descaracterizadas. É dilacerante que a tudo isso se junte tais mentes retrogradas e xenófobas.
O acaso é sempre um sucedimento de situações que se vão repetindo com uma vulgaridade caótica e que tem que nos deixar forçosamente deprimidos, pois continuamos a repetir dia após dia os mesmos erros calamitosos.
Amar alguém é o cerne da questão. A cor, o sexo, a religião, a nacionalidade, tudo isso é, definitivamente irrelevante.
Foi isso que disse em tom conclusivo à Verónica. A sua filha continua apaixonada pelo tal Brasileiro encantador, e se a minha amiga me convidar para um possível casamento, eu vou a ficar a torcer para que lhes suceda o que humanamente todos nós desejamos.
Eternidade, nesse amor. Que seja eterno… enquanto dure… como dizia o Poeta Vinícius de Moraes.

Vóny Ferreira

[Dito]

Assisto com grande indignação e sentimento de impotência ao recrudescer de preconceitos que ,há muito ,deviam  encontrar-se extintos.É assim o Homem.Às vezes,interrogo-me sobre qual seria o comportamento desta pessoa afável que me indica amavelmente a padaria ao fundo da rua,numa «situação-limite».É um exercício com final imprevisível.
Modestamente , sugiro que ofereças este poema do António Gedeão à tua amiga.Pode ser que surta algum efeito.

Lágrima de preta

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

 
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

 
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

 
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

 
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

 
Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

[Vóny Ferreira]

Meu caro, nem sempre os poemas surtem o efeito desejado.
Como sabe nem toda a gente gosta de poesia, o que por si...
é limitativo!
Essa amiga, poderá ser fictícia compreende? Quem escreve deve recorrer
(e eu recorro) ao que vai acontecendo aqui e acolá e ao que nos chega
ao conhecimento por intermédio de outras pessoas.
Há alguma ficção neste texto. O pormenóre do Domingo Mucuaia, por exemplo,
é real. Foi o meu primeiro amigo em Angola.
Na minha perspectiva é neste tipo de textos que temos a faculdade de focar
assuntos recorrentes. Veja-o por esse prisma. Obrigada pela sua participação.
Vóny Ferreira

[Dito]

Real ou fictícia, surtindo ou não efeito,podes sempre oferecer-lhe o poema.

[Vóny Ferreira]

Tem toda a razão e o poema é lindíssimo!
Um grande abraço, 
Vóny Ferreira

[Goreti Dias]

Um bom texto. Já agora, adoro esse poema de Gedeão!
Abraço

[Nina Araujo]

Que seja eterno (sem sofismas) esse lindo amor e tambem o teu belo texto,Vony!

[Vóny Ferreira]

Goreti,
a ti agradeço-te o sorriso (através das palavras sempre gentis) e..
o incentivo.
À Nina, sempre simpática e generosa quero dizer-lhe que tenho a maior
admiração pelo que escreve. É uma das pessoas que aqui mais me tem incentivado, e
isso é sempre motivador. Obrigada, querida!
Beijos para ambas.
Vóny Ferreira

[Oswaldo Eurico Rodrigues]

É tão interessante ler um texto com uma temática assim. Aqui no Brasil existe um arco-íris de gente de todos os lados do planeta. Não muito raro dentro de uma mesma residência. Todavia, existe racismo. Incrível! Velado e hipócrita, mas existe. É uma pena.

Gostei de encontrar esse texto no meio das minhas garimpagens "escritarteanas".

Beijo furta-cor da Terra Brasileira.

[Vóny Ferreira]

Abomino o racismo. Fui para Angola pequena, lá me formei
intekectualmente e como mulher e por lá deixei muitos
amigos de todas as cores. É um temática que gosto de
abordar já que inclusivamente tenho 3 meio irmãos
por parte do meu pai mulatos, e damo-nos todos lindamente,
como uma familia que somos. Uma das minhas meia.irmã é
casada com o ministro da cultura de Angola.
Abraço Oswaldo. As pessoas valem pelo que são como pessoas
e não pela etnia, religião, etc.
Bem hajas!
V.F.

[Oswaldo Eurico Rodrigues]

Com certeza, Vóny. Deus não tem cor, etnia ou nacionalidade. Ele nos fez únicos, portanto preciosos. Que bom sabermos disso.

Beijo fraterno desse amigo do Atlântico Sul.

[Vóny Ferreira]

Obrigada Oswaldo
por teres ressuscitado um texto que
na altura passou praticamente despercebido.
Beijo meu querido. O que importa somente no
ser humano é o seu bom coração e a sua formação
como tal.
Vóny Ferreira

[Goreti Dias]

Plenamente de acordo!
bj

[vilde]

Gostei de ler Vony!
É um assunto polémico e o mundo ainda continua cheio de complexos para aceitar a diferença.
O meu príncipe Guilherme Ching, tem mistura de Moçambique, da China e de Portugal.
Informo-vos que Deus filho, era preto. Aquela cor do Norte de África onde os Judeus, os Sírios e Egípcios viviam. Não me parece que naqueles tempos houvesse por lá mistura com os Suécos.
Bjs

[Guacira]

Realmente, Vony, este é um assunto polêmico, mas não o unico quando se trata de preconceito. Nós, brasileiros, um povo eminenetemente híbrido desde a sua ancestralidade, temos profundas - no pior sentido - relações com a xenofobia e todas as outras formas de preconceito, infelizmente, nem sempre de forma velada...
Vimos buscando dentro dos Sistemas de Educação, caminhos que possam estabelecer políticas que tragam um pouco de lucidez, um pouco de compreensão do quanto esse absurdo é excludente, desumanizador e desrespeitoso quanto aos direitos das pessoas. Porém, o preconceito não se destroi por força de lei, uma vez que está arraigado na alma, e para mim, precisaria ser objeto de estudo da Psicologia...
Gostei do seu texto, porque, além de bem escrito, renova a possibilidade de reflexão.
Abraço,
Guacira