TARA PERDIDA

[josé antonio]

Toni era sem dúvida alguma a figura mais carismática que percorria há muitos anos as ruas centrais da vila. Com muito poucas mudas de roupa, subia e descia na irregularidade dos paralelos ao longo do dia, desde manhã cedo, com longos e unipessoais discursos que ninguém entendia, senão quando, mesmo estranho no sítio, mas com ele se cruzando era obrigado a ouvir a sua máxima : - Vai trabalhar malandro!. E seguia altivo e pragmático. Toda a caminhada diária era preenchida desta forma. Dizia-se que ficara abalado dos neurónios por causa dum problema de amor quando ainda jovem e já contava os sessenta e muitos anos. Filho de gente bem remediada na época, chegou a estudar num seminário e quando se viu impedido de casar com a jovem amada, decidiu abandonar a vida e dedicar-se ao abandono, dos outros e de si mesmo. Não sei se verdade, lenda ou mera ficção da vizinhança. Alimantava-se do que lhe davam, vestia o que lhe davam, lavava-se, quer dizer era lavado quando um familiar ainda vivo e envergonhado, auxiliado por um amigo, o conseguia meter numa banheira gasta, cheia com água tépida carregada à baldada, nos anexos da casa. Depois seguia-se um escanhoado perfeito da barba sempre crescida e mal tratada como ele. Não engordava nem adoecia. Resultado de tanta caminhada, diziam os mais entendidos, invejosos e fartos de tanto medicamento e contas da farmácia.Tinha quarto e cama em todos os cantos, desde a entrada do supermercado no outono e inverno e o no mato sem barulho nem movimento na primavera e verão.
Nos últimos tempos decidira recolher garrafas de cerveja vazias que trocava a seis cêntimos cada, na mercearia do Alberto que ele pensava ser seu parente afastado, como sempre decidia supor quando gostava de alguém. E Alberto em troca, sem ver nem contar as garrafas vazias dava-lhe sempre o mesmo valor para o bolso que ele perigosamente gastava, no dizer de quem o vira mais que uma vez, nos copos de vinho com que produzia a máxima conhecida ou ainda para quem passeava o cão: - Deita o cão fora!. E continuava como se alguma vez tivesse trabalhado um dia que fosse.
Alberto, cansado e doente acabou por se desfazer da mercearia que foi tomada por uma ex-feirante bem sucedida. Toni não deu pela diferença, recolheu as garrafas junto ao restaurante e contentor do lixo e levou-as à mercearia. Esperou que a nova proprietária o visse, tomasse conta das garrafas e fosse à caixa registadora buscar o dinheiro, tal como Alberto fazia.
D. Rosa, saíu do balcão foi ter com ele e friamente terminou com o faz-de-conta mantido por Alberto: - Estas garrafas não valem nada. São de tara perdida. Posso dar-lhe uma esmola mas não volte cá com lixo para eu deitar fora!.
Toni não quis ouvir mais nada nem aceitou qualquer esmola da D. Rosa e saiu porta fora sem olhar para trás. Mais perdido que nunca. Sem o prazer de recolher as garrafas vazias de cerveja, como a grande tarefa que produzia e lhe trazia o rendimento suportado por Alberto.
Nesse mesmo dia, já noite avançada, uma vizinha que habitava paredes-meias com o mato aonde Toni pernoitava no tempo mais quente, veio chamar-me aflita pois quando passava pelo carreiro vira o Toni deitado de barriga para baixo e com medo dele não lhe mexeu mas veio pedir-me para confirmar se estava vivo. Fui com ela e quando tentei virá-lo de posição, reagiu como era habitual com desconexos mas insultuosos vocábulos, levantou-se e fez-se ao caminho.
Nunca mais o viram nas caminhadas pelas ruas da vila, sem rumo nem interesse.
 

[cleo]

Comovente!
É a primeira palavra que me ocorre para comentar o que acabei de ler.
É uma história triste de uma vida desperdiçada por nada...
Tenho um Toni como vizinho, aqui mesmo ao lado, eu no direito e ele no esquerdo... desde que para aqui vim morar, que lhe conheço sempre os mesmos passos. De casa para a rua, onde permanece uns minutos, o tempo suficiente para a subir e voltar a descer, e volta de novo para casa, onde permanece mais alguns minutos, retornando de novo... é assim desde manhãzinha até à noite, seja verão ou inverno, esteja frio ou calor. E este senhor era engenheiro , um craneo lá na empresa onde trabalhava. Reformaram-no e deu nisto. É triste ver a solidão tão de perto...

Parabéns pelo texto, pois é um retrato de tantos Tonis deste planeta!

[josé antonio]

Boa tarde Cleo,

Tem toda a razão,  infelizmente há muitos Tonis por esse mundo fora. Uns mais sós e infelizes que outros mas todos eles abandonados e desumanizados.

Abraço

[Laura]

Pelo menos, quando entram os "bem sucedidos" na história... Esse sucesso, dispenso eu.

[Tim_booth]

Pelo menos o Toni era feliz enquanto podia cumprir a sua importante tarefa de recolher as garrafas de Tara Perdida. Perdido isso, perdeu-se o homem.

Belo conto José António.

Cheers

[Laura]

É isso mesmo, Tim... quando desapareceu o Alberto, desapareceu o sentido.

[josé antonio]

Boa tarde Laura e Tim,

Vale a pena postar trabalhos para pessoas que sabem ler, interpretar e estimular.

Abraço

[britoribeiro]

Acho que em todas as terras há sempre um Toni, uma figura publica, que o desgosto, o alcool ou a demencia roubou à vida. Gostei muito.

Abraço

[Goreti Dias]

Um conto de realidades feitas. Grassam por aí muitos seres assim desprezadso pelos bem sucedidos que fazem menção de chamar as coisas pelos nomes, ainda que isso magoe como faca de lâmina afiadíssima!

[josé antonio]

Boa tarde Brito Ribeiro, Goreti e Dite,

Não podemos estar mais de acordo e a experiência da vida traz-nos todos estes e muitos mais Tonis à memória.

Abraço para todos vós.

[Nina Araujo]

O mundo ficaria mais fascinante se essas "dona Rosa" da vida fossem menos ranzinzas e compreendessem que se não podem ajudar pelo menos deveriam não atrapalhar,ô peste!
Que conto lindo, que bela expressão narrativa sobre a solidão desse Toni. E nos alerta para tantos deles que existeM ao nosso redor e que às vezes compete-nos apenas dar um olá, ou seis cêntimos,ou uma sopa mas principalmente um pouco justo de atenção, o que custa?
Beleza de conto!

[josé antonio]

Grande abraço Nina,

E não gaste a fortuna toda...