gdec2001
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« em: Dezembro 30, 2009, 01:03:29 » |
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A 4ª visita -
Revestido pelo uniforme oficial e ostentando todas as condecorações e faixas e ainda a máscara adequada à dignidade do meu cargo , achei-me numa rua larga , longa e fresca , como não há muitas, para percorrer. No entanto não avançava melhor que um nadador através de um mar de pegajosos sargaços. E tudo porque tinha de fazer os costumados trejeitos à esquerda e à direita , para corresponder aos respeitosos cumprimentos dos que , desta maneira , se propunham, disfarçadamente, dificultar o meu avanço. O que me valeu foi que à medida que aumentava o número dos transeuntes rareava o dos que me reconheciam. Quando deixei de ter de saudá-los pude, enfim, distrair-me. Primeiramente distraÃ-me dos membros inferiores e o meu caminhar tornou-se logo mais fácil. A multidão ia também tomando posse do resto do meu corpo à medida que engrossava à minha volta e. em breve, nem mesmo me era possÃvel apurar se a cabeça me pertenceria. De facto os nossos pensamentos vibravam em unÃssono e foi assim que antes de o ver já vira o lugar para onde nos dirigÃamos. Era um enorme recinto que a costumada e anfitiátrica bancada circundava. A multidão, reparei, apontava para mim e ria mas era um riso alegre empurrando-me para a arena. Quando ali cheguei experimentei as minhas habilidades - que outra coisa poderia fazer? - executando na perfeição três mortais a seguir que terminaram - e aà é que estava a novidade - na posição horizontal. Dificilmente pude suportar a ofensiva dos aplausos de uma qualidade que eu - tão habituado a eles - desconhecia. Em vez da costumada ondulação sonora o que chegou até mim foi uma vaga de verdadeira luz; vede se não me espantaria . Nela banhado continuei com o segundo número que consistia simplesmente em passar da posição horizontal à vertical - e sabeis como tinha disso experiência - mas de modo tal que parecesse puxado por um fio que me ligasse a cabeça a algum espectador que ocupasse exactamente a bancada superior do lado para onde olhavam os meus pés ; ou seja, explicando melhor e em menos palavras: Como os teimosos de feira. O êxito desta simples operação não é para ser contado com palavras. Apareceu então um patusco vestido como um palhaço que me ofereceu um violino. Agradeci-lhe com o costumado pontapé e pus-me a tocar com todo o sentimento de que sou capaz - creio já ter mostrado ser capaz de muito sentimento - e a cantar. Cantava : Se eu me deixasse mostrar aos saltos no meio da rua em vez de impor-me amarrado no fundo não sei de quê mas tão no fundo do fundo que ninguém me ouve e vê; quem me olhasse e quem me visse - o quem que amarra o que via- talvez se risse.
Mas se o que eu tenho amarrado no fundo não sei de quê deixasse que eu me mostrasse em vez de ter-me amarrado no fundo fundo do fundo não sei de quê, mas tão fundo e tão profundo que ninguém me ouve e vê; quem me visse e quem me olhasse - o quem que amarra o que amarra o que veria- talvez chorasse etc., etc .. etc.
Mas não consegui levar até ao fim , de uma só vez , a cantiguinha porque, apesar da suavidade da música e da não menor suavidade com que manejava o instrumento , não tardou que a corda mais grossa rebentasse com um estrondo que , assustando-me , me fez repetir num abrir e fechar de olhos os dois números anteriores. O entusiasmo que tal cena despertou na assistência deve ter começado a preocupar seriamente as autoridades daquela terra , se é que tinham alguma noção dos seus deveres ; eu cá continuei a tocar sem qualquer perturbação pois as três cordas restantes eram mais do que suficientes . Foi talvez por isso que a segunda corda não tardou a seguir o exemplo da primeira, do que não deixei de apresentar desculpas ao público com gestos adequados ; e o público retribuiu a minha delicadeza com aquelas rebrilhantes gargalhadas que caÃam , feitas de luz , na arena em que eu, livre, evoluÃa. Procurei então acabar a minha ária servindo-me das outras cordas e não me estava a sair mal - viam-se lágrimas em muitos olhos- quando a penúltima corda faleceu. Desatei a chorar como um menino e todos choraram e riram comigo durante algum tempo . Restava-me precisamente a corda mais miudinha . Acreditar-me-eis se vos disser que era agora que a música saÃa mais pura? Mais ... mais ... isso. Esperava de um momento para o outro ficar também sem aquela frágil companheira mas o certo é que cheguei sem novo acidente ao fim da sinfonia. O público não levou isto a bem e para o satisfazer ataquei uma marcha bem militar . Aguentei-me nela durante um andamento completo sob os assobios da assistência que , como é sabido , gosta de assobiar as marchas ; comecei a enraivecer-me e achando ali uma vassoura deitei fora o arco e continuei a marcha com ela ; embora não se notasse diferença na música , o público aplaudia agora gostosamente mas a minha raiva não parava de crescer ; arrumei a vassoura , e passei a tocar brandindo o violino de encontro à s cordas do trapézio , à s cadeiras desocupadas da primeira fila e à s grades da jaula dos leões. Acabada a marcha , exibi desesperadamente o que restava do instrumento - uma tábua miúda sobre a qual , bem esticada , se distinguia a intrépida cordazinha. Infelizmente mal me cheguei a aquecer à luz dos derradeiros aplausos porque logo caiu sobre mim , como um espesso nevoeiro , o mais terrÃvel do silêncios . Deixei então de distinguir as coisas à minha volta e pude enfim olhar-me ; reparei que com os movimentos desordenados que fizera me esfarrapara todo perdera as minhas faixas e condecorações deixara cair a máscara. Todos puderam destarte ver o logro em que haviam caÃdo e não tardou que com quatro pontapés no lugar adequado , me encontrasse novamente na rua. Empreendi então o difÃcil caminho do regresso e chegado à minha cidade com facilidade me refiz dos efeitos desta forçada, curta e desastrosa mas total, digamos assim , visita. Não vos enganeis porém com o seu significado , nem vos esqueçais que foi inteiramente a obra do embuste.
Geraldes de Carvalho
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