Capitulo III
A missão. O Lobo. A partida apressada.
“Porque sou importante?” perguntou Laho imediatamente.
Enki ponderou alguns segundos antes de lhe responder. Era como que se um grande segredo estivesse por detrás daqueles lábios e que dizê-lo pudesse por em risco tudo e todos.
“És importante, “ começou Enki “e apenas precisas de saber isso. Tudo a seu tempo, Laho.”Laho acordou cedo mas não saiu da cama. Ficou deitado a pensar em tudo o que tinha acontecido até agora.
Em apenas dois dias Laho havia aprendido mais que durante os doze anos que havia vivido em Falindûr. Sabia agora a razão para a existência do Mundo. Sabia agora que, inicialmente, todos os seres ali estavam apenas para prazer das duas entidades superiores, Naîr e Saûr. Mas será que já não era assim? Não seriam eles, de certa forma, ainda peões num jogo jogado por seres superiores?
De qualquer dos modos, fossem ou não, era algo que estava fora do seu alcance e sobre isso nada poderia fazer. Outra coisa sobre a qual ele nada podia fazer era os seus sonhos. Já era a segunda vez que sonhava com aquela cidade de pequenos palácios. Seria mesmo um sonho? Ou algum tipo de visão, ou previsão? Lugh estivera lá. Porquê? Que faria Lugh numa cidade daquelas – que faria Lugh numa cidade daquelas a acompanhar a filha de uma Imperatriz? Que fariam todas aquelas pessoas à espera da filha da Imperatriz para depois nem sequer olhar para ela? Que faria Peowny no meio deles?
Peowny era de certa forma familiar. Não sabia porquê mas sentia uma certa afinidade para com ela. Será que já alguma vez estiveram juntos? Quem seria esta rapariga?
A manhã foi preenchida por estes pensamentos e ainda mais alguns até que da porta veio um leve
knock knock e uma voz perguntou.
“Laho, posso entrar?”
Era Enki.
Laho levantou-se apressadamente e abriu a porta.
”Claro que pode, mestre.” disse Laho baixando-se numa vénia.
“Levanta-te rapaz, não me faças vénias. Sabes muito bem que não gosto.”
“Desculpe. E desculpe também ainda não estar vestido nem preparado para a nossa aula, estive perdido em pensamentos na minha cama.”
Laho apressou-se a vestir-se. Enki sentou-se no banco perto da mesa tal como se havia sentado na sua ultima visita a Laho. Em meros segundos Laho já estava com um pergaminho e uma pena na mão pronto a escrever e sentou-se no outro lado da mesa virado para o seu mestre.
“Onde ficamos da última vez, podes lembrar-me? A minha memória já não funciona tão bem nestes dias. É o que dá ser – perdoa-me a expressão – demasiado inteligente, e ter que me ocupar de imensas coisas neste reino.” Enki sorria gentilmente enquanto falava, mas Laho sentiu que algo de errado se passava. Sentiu que esta reunião não era uma simples aula e que algo iria mudar nesta mesma manhã.
“Ficámos no Pacto. O Mestre mostrou-me o Pacto mas depois teve que ir embora.” respondeu Laho.
“Ah! Sim. Exacto, o Pacto.” exclamou Enki, meio distraído. “Ora, muito bem, ficámos no Pacto… estás pronto para escrever um pouco mais?”
Laho acenou com a cabeça e molhou a pena na tinta.
“Ora, ficámos no Pacto…” continuou Enki. “Depois do Pacto, como te contei, o mundo foi reconstruído e as duas deidades foram expulsas de novo para o Vazio. O mundo foi dividido em quatro Elementos e em duas facções. Os quatro elementos são o Ar, a Água, a Terra e o Fogo, creio até que isso já sabes.”
Laho acenou afirmativamente e disse “Li na biblioteca, isso eu sei. Mas sei pouco mais.”
“Pois bem, agora saberás mais. Os quatro Elementos são a fundação de todo o mundo. Todos nós provimos da fusão desses elementos. Todos nós e tudo o resto à nossa volta. Não existe nada neste mundo que não venha deles.
Enfim, posteriormente à criação desses Elementos, foram criados dois tipos de homens: os Luzes e os Sombras, e o Mundo ficou dividido em dois. O norte do mundo pertencia aos Sombras, o sul pertencia aos Luzes. No centro do mundo estava uma grande ilha inabitada.
Durante centenas de anos o mundo foi próspero. Os Luzes cultivavam e cresciam dentro das suas fronteiras e o mesmo acontecia com os Sombras. Tal como se haveria de esperar tanto uns como os outros desvendaram os segredos dos Elementos o que permitiu a alguns – principalmente os mais inteligentes e mais fortes de espírito – dominar os Elementos.
Embora tal acto tenha sido uma mais valia pois permitiu a ambas as nações uma grande evolução, também foi um acto que, mais tarde levou ao confronto entre as duas nações, ou “raças” se assim as quiseres chamar, embora eu ache esse termo um pouco forte demais. Luzes ou Sombras somos todos feitos do mesmo e devemos ser tratados da mesma forma. Estás a escrever tudo?”
“Sim, mestre.” disse Laho ao mestre enquanto escrevia velozmente.
“Eu espero que acabes. Não temos pressa, ou melhor, temos… Mas há coisas que devem ser feitas a seu tempo.”
Enki olhou para fora da janela. O tempo parecia mais escuro, haviam nuvens no céu e o sol era por vezes escurecido deixando a cidade envolta numa meia-escuridão sombria. Abanando a cabeça como que para se livrar de maus pensamentos Enki virou-se de novo para Laho e continuou.
“Ora bem… onde íamos?” perguntou honestamente.
“Os Luzes e os Sombras dominaram os Elementos. Mas o mestre dizia que não foi uma coisa boa.”
“Pois não, não foi uma coisa boa… ou, pondo de uma maneira mais simples, os Elementos foram uma faca de dois gumes. Tanto nos ajudaram como contribuíram para uma guerra entre nós.
Mas como eu dizia, ambos os lados, Luzes e Sombras, dominaram o poder da água, do fogo, da terra e do ar. Assim sendo ambos os lados tiveram uma evolução magnifica; as casas começaram a ser mais facilmente fabricadas, os alimentos eram mais fáceis de obter, os meios de transporte evoluíram e tornaram-se mais rápidos. Enfim… foi óptimo durante uns tempos.
Mas não durou para sempre. Essa felicidade que se fez sentir ao descobrir e dominar esse poder desvaneceu rapidamente quando alguns, que se julgavam ou mais fortes ou mais inteligentes que outros, abusaram do poder dos Elementos.
No reino dos Sombras nasceu um homem que depressa se tornou no maior guerreiro daquela nação. Esse homem chamava-se Hister.
Hister cresceu no ceio de uma família bem abonada e nunca sentiu falta de nada. Teve professores que o ensinaram tudo o que sabiam, posso até dizer que ele se tornou mais sábio que todos eles juntos. Teve também outras pessoas que o ensinaram a arte do escudo e da espada, e digo-te também que Hister ficou mais forte que todos eles juntos.
Era de facto um homem extremamente forte e inteligente. Se tal sabedoria estivesse posta a favor do bem-estar… Mas não. Hister seguiu outros caminhos. Durante anos Hister esteve isolado de todo o mundo e, quando finalmente regressou a casa, vinha com a notícia de que dominara um poder que nunca ninguém havia dominado. Dizia que aprendera a dominar um novo Elemento: o Elemento das Trevas.
Claro que tudo foi mentira. Não existe nem nunca existiu mais que quatro elementos. Mas Hister sabia o que estava a fazer e por isso continuou com a sua mentira. Afirmava que este era o seu Elemento por direito, que toda a nação dos Sombras se deveria curvar perante. E os Sombras, confundindo o nome da sua nação com o nome deste “novo” Elemento, deixaram-se iludir e seguiram Hister sem fazer perguntas. Esse foi o maior erro daquela nação.
Do outro lado do mundo os Luzes tomaram conhecimento de que alguns dos seus habitantes possuíam maior aptidão para controlar os Elementos. Mas, em vez de alguém se erguer e comandar os Luzes como um ditador, todos os Luzes se reuniram e decidiram tomar partido de todos aqueles que exibissem uma estranha aptidão para com este poder, de forma a que a nação tivesse um maior desempenho e evoluísse e prosperasse cada vez mais. E este é o raciocínio mais correcto.
Passadas algumas décadas um homem com uma estranha aptidão para os Elementos surgiu também do meio dos Luzes. Este homem era Ikari. Mas, ao contrário de Hister, Ikari não impôs nada aos Luzes, não tomou o poder só para si nem controlou ninguém. Ikari subiu ao poder depois de uma grande reunião entre Luzes onde todos decidiram que ele era o futuro da nação e que deveriam depositar nele toda a sua confiança.
Depois de mais alguns anos, anos os quais foram marcados, no lado dos Sombras, por grandes concentrações de tropas a sul das suas terras, Hister decidiu atacar o reino dos Luzes.
Mas não era um simples ataque, Hister era esperto. De forma alguma queria que as suas tropas confrontassem as tropas dos Luzes nas suas terras. Isso causaria demasiadas baixas na sua terra e demasiada coisa seria destruída. Em vez disso, Hister decidira confrontar-se com os Luzes na ilha que se encontrava no centro do Mundo. A ilha era o lugar perfeito pois era inabitada e assim nem umas terras nem outras sofreriam com a guerra.
Numa manhã de Outono, enquanto Ikari, no reino dos Luzes, descansava ao relento numa clareira perto da sua casa, um corvo cruzou os céus mesmo por cima dele, desenhando um grande “S” negro.
Não perguntes como mas Ikari entendeu logo o que se passava. Imediatamente reuniu os melhores soldados dos Luzes e cruzou o mar – anota aí que este mar se chama Fur’ingard, o Mar Esquecido – e foi ter às terras de Sarin’gard, chamadas na nossa língua de Terras Esquecidas.”
Enki respirou fundo, como que recuperando as forças para o resto da história. Depois esperou que Laho acabasse de escrever e continuou.
“Enfim… nessas terras travou-se o maior confronto da nossa história. De um lado, comandados por Ikari, os Luzes combatiam ferozmente. Do outro, comandados por Hister, os Sombras lutavam de forma bruta e suicida. Ikari liderava o seu exército na frente mas Hister mantinha-se nas linhas de trás e apenas dava ordens aos seus soldados.
Esta guerra durou anos e anos. Muitos homens morreram e os filhos desses homens também morreram pois assim que um rapaz fizesse dezasseis anos seria enviado para a guerra sem contestação.
Ao fim de todos aqueles anos e ao fim de todas aquelas mortes apenas dois homens ainda tinham forças para lutar: Ikari e Hister.
Entre esses dois travou-se o maior duelo de sempre… Nazir-Pall… a Luta do Destino… é assim que agora o chamamos. E com razão… com razão.
Não se sabe ainda hoje como decorreu essa batalha, sabe-se apenas que foi feroz e que, após muito esforço, Ikari ergueu-se do meio dos destroços com a cabeça de Hister na mão.
Quando Hister morreu todos os Sombras pareciam sair de um transe e de uma ilusão. Foi aí que todos enchergaram a verdade e que o nosso destino foi traçado. A maior parte dos Luzes e dos Sombras ficaram naquelas terras, onde construíram novas casas. As mulheres navegavam para a ilha para encontrar os seus maridos e depressa toda a ilha ficara povoada. Todos decidiram não voltar mais às terras de Luzes ou de Sombras, e aqueles que decidiram voltar nunca mais foram vistos.
Certo dia, pouco tempo após ter vencido Hister, Ikari desapareceu das terras esquecidas e nunca mais foi visto. A única coisa que deixou para trás foi um desejo: que esta terra fosse chamada de Hishgàr… Esperança.”