F

[damasco]

O resto do sofá a sobreviver, rasgado, queimado, desmaiado, a esforçar-se por respirar, luta pela vida junto a uma cómoda a abarrotar de livros livros livros. Tantos! No dia em que. Naquele dia, F, pés vagarosos, muito vagarosos, tão tão lentos, uma banda em litania arrastada sofrida, a passar, mãos a anunciarem-se, a nascerem ali.
(Insinuavas-te ali, F.).
As mãos, depois, no alto. Rendas e folhos.
(Entravas, F.).
No canto, o cachorro desconfiado, meio a rosnar, meio a não rosnar, agitava meio rabo, a reconhecer, farejar.
(Naquele dia, F.).
A multidão interna afastou-se, tranquilizada depois de te observar quinze minutos. (Sorriste – era a luz, F.). Soltaram os olhos, silenciaram. Encolheram os ombros de resignação e viraram o passo. Deixaram-te passar, ombro com ombro, braço com braço.
(Saiu a multidão, F.).
E tu ali a olhar.
(Para onde olhavas, F?).
Meio comatoso, levantei-me. A imagem da amendoeira não me saía. (Não se apagava facilmente, era o que queria dizer, F.). Agarrou-se às memórias, intrusa. A intrusa agarrada às memórias. Certamente mentirosa, não tenho a certeza. A I, alta e robusta, encorpada, entroncada, grande, gigante, a apontar, a mostrar as flores. Quem quer saber disso, I? Está mas é calada! Volta lá para onde vieste. E tu ali, F, a assistir àquilo, à distância de uns quantos anos de. Eu, comatoso, a recuperar do sono, a esfregar os olhos, a afastar os sonhos e essas coisas todas que acontecem quando se dorme.
(Para onde olhavas, F?).
Entraste, de qualquer modo. O teu corpo nascia naquele momento. As mãos, antes de tudo, as pontas dos dedos a trespassarem a porta; os pulsos das rendas e dos folhos, do branco, da carne, finalmente os braços. Todo o teu corpo, F! O cão, curioso, ao mesmo tempo que. A roupa no chão, na madeira, no frio, esquecida. Nem o peixe se importou; continuou de boca aberta a beber água, a humedecer a língua, a beijar vidro. O cão, a pulga sacudida.
Puxaste os lençóis e deitaste-te.

[Valdevinoxis]

Um texto curioso, bem engendrado, original e muito atractivo para quem quiser fazer uma leitura atenta. Gostei bastante da forma muito estilizada do trabalho. Muito boa a introdução do efeito "voz off" e o reforço constante e deliberadamente exagerado das situações. Digno de leitura e análise.
Este encheu-me as medidas!

Valdevinoxis

[Goreti Dias]

E vá-se lá saber para onde olhava! Um texto diferente!

[damasco]

Valdix, agradeço muito o cirúrgico comentário. Vi o texto, mesmo à minha frente, dissecado e a mostrar as entranhas.

E vá-se lá saber para onde olhava!

Goreti, alguma sugestão?

[Goreti Dias]

Talvez para as molas do sofá esventrado... rs...rs...

[Laura]

Os sonhos são assim mesmo... foi apenas um sonho.

[Teresinha Ferraz]

espantoso! adorei a descrição, a repetição dos momentos, as palavras diferentes a caracterizar a mesma acção, o desenrolar, está diferente mas rico em vida. consegui imaginar uma série de flashes de momentos do texto, como se estivesse a assistir a um filme! está fantástico, adorei.

[damasco]

Obrigado, Teresinha. Fico muito contente que tenha gostado assim.