Maria Gabriela de Sá
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« em: Fevereiro 14, 2020, 19:38:28 » |
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Nunca levo dinheiro quando vou fazer a minha caminhada diária, quiseram as coordenadas da vida, que ela decorresse relativamente próximo do santuário da Formiga. Desde a primeira visita, logo à subida, lá estava ela, na escadaria, lenço na cabeça, andrajosa como andam quase todas, fotografia do filho - talvez quatro anos – exposta como se estivesse num porta-retratos em cima de uma mesinha de recordações familiares. Ao cruzar-me com ela, estendeu-me uma lata, tipo de salsichas, o seu mealheiro. Disse-lhe que não tinha um cêntimo no bolso. Visitei a igreja, fiz o que tinha a fazer e ela, já no meu regresso, insistiu, enquanto mirava as minhas sapatinhas com olhos de cobiça, e, queira Deus, que não também com olho grande. Perguntou-me então se não tinha em casa uns sapatos que já não usasse. As sandálias dela estavam todas rotas. E mostrou-mas. Que não, com toda a certeza não tinha. Recentemente, tinha feito uma razia ao calçado que já não usava. Em todo caso, iria confirmar. -Que número calças? -37, 38 No dia seguinte, aquando do meu ritual, simultaneamente de oração e exercÃcio fÃsico, culto da alma e cuidados do corpo, disse-lhe. Nada feito. Em todo o caso, iria comprar-lhe umas sapatilhas. Não seriam uns mÃseros 10 euros – já as vira algures a esse preço, - que me iriam deixar mais pobre. -Vou dar-te qualquer coisa para calçares. Umas sapatilhas. -Não. Não! Umas chinelas. Com cunha, como essas que trazes. -Está bem. És como eu, que adoro cunhas. Ontem, lá fui desencantar umas chinelas, como ela queria. Claras, os meus ténis são de um cor-de-rosa leve, as chinelas são brancas. Não seria a cor a deixar ficar mal os meus gostos perante os gostos mais do que duvidosos – talvez só contingentes - de uma cigana romena calçando umas peúgas à s riscas sobre uma leggis à s flores, vestindo uma saia rabona de cor indistinta e um casaco tipo fato de treino igualmente indiferenciado. Hoje, entreguei-lhe um saco com as desejadas chinelas, uma laranja e um pacote de leite achocolatado. E entrei na Igreja de Santa Rita, enquanto ela falava ao telemóvel. Quando saÃ, já ela tinha desligado: -São grandes( comprei o 39 por causa das meias) E mostrava-me as chinelas velhas, abertas e de tiras estropiadas, cor de rosa e com uma fivela prateada como o fecho do meu calçado. -É melhor assim. Convém serem um bocadinho maiores. De contrário, magoarias os calcanhares. E são fechadas à frente para não apanhares chuva no Inverno. -Agora é inverno? -É. E levantando as saias, mostrou-me as leggis floridas. -Tens em casa disto? -Não, não uso -Bem que podias dar-me o que tens nos pés. Davas-me essas e compravas outras para ti… -Era só o que faltava! Se tu soubesses o que me custou encontrar uma coisa adequada à s diabruras dos meus pés e das minhas costas não me pedias semelhante! -Anda lá faz isso… -Não tinhas tu a culpa! E vim embora, enquanto pensava: Raio da cigana, o que ela queria era que eu descalçasse as sapatilhas e regressasse a casa descalça. E rememorando a primeirÃssima abordagem da rapariga, de que já me tinha quase esquecido, foi isso que, na verdade, ela me sugeriu, a ponto de eu lhe dizer: -Mas, és maluca! Querias mesmo que eu fosse descalça para casa como a boa samaritana que nunca fui, nem serei algum dia? Foi então que ela deu a volta ao texto, falando-me no calçado que houvesse cá em casa. Peste! Ela sempre quis mesmo as minhas queridas e cómodas sapatinhas, amigas dos meus calos e artroses. Mas, bem Pode esperar, sentada e ingrata! Que Santa Rita lhe dê mais alguma coisinha, se assim o entender, porque eu fiquei sem vontade de lhe deitar um cêntimo furado mais na lata das salsichas.
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