Antonio
|
|
« em: Outubro 19, 2007, 11:41:42 » |
|
Fátima Azevedo era uma solteirona, fervorosa cristã, que vivia sozinha numa velha casa de lavoura que fora dos seus pais. Tinha perto de trinta e oito anos e trabalhava na Câmara Municipal da vila sede do concelho. Mal fizera o 12º ano, o pai arranjara-lhe o emprego que manteve até hoje e onde se esmera para ser boa funcionária. Era a única filha de Zeferino e Carmelinda: o homem amanhara uma razoável propriedade da família situada adjacente à casa e acumulava com funções de jardinagem na Junta de Freguesia. Mas, ainda cedo, problemas de saúde começaram a impedi-lo de fazer trabalhos pesados e, ao fim de mais uns anos, quando a sua Fatinha foi para a edilidade, vendeu grande parte dos terrenos por bom dinheiro e dedicou-se à nobre actividade de nada fazer. A mulher tratava dos assuntos domésticos e dos animais que viviam no piso térreo da habitação. O andar superior era destinado aos três membros da família. Há cerca de quatro meses faleceu, de cancro na próstata, o velhote. A mulher não resistiu muito mais tempo. Três meses depois, uma pneumonia acarretou-lhe várias complicações que culminaram no seu passamento. A filha foi o amparo dos pais na velhice e na morte. - Não fez mais do que a sua obrigação – diziam uns. - Mas há muitos que nem a obrigação fazem – comentavam outros. - Era filha única! Se fossem meia dúzia, tinham andado a empurrar uns para os outros e os velhos acabavam num asilo ou no hospital – sentenciavam alguns. E assim a Fátima se viu sozinha na vida. Não era bonita. Tinha os dentes acavalados, os olhos pequenos e o nariz adunco, mas era razoavelmente elegante. Tivera vários pretendentes mas, ou ela ou os pais, sempre lhes acharam defeitos e assim foi ficando solteira, até hoje. Tem ainda uma muito antiga paixão por um colega da escola primária, o Jaime, mas este nunca lhe prestou a atenção que ela gostaria. Entretanto casou e já tem dois filhos espigadotes. A casa, depois da venda dos terrenos pelo Zeferino, sofreu umas transformações no rés-do-chão, sobretudo para converter umas pocilgas em garagem para dois carros pequenos: um do pai e outro da filha. O acesso ao andar que servia de habitação era feito por uma escada de granito, no exterior. Era tudo muito velho. O Zeferino, com uma pequena reforma, queria gastar pouco do dinheiro que tinha a render em Certificados de Aforro pois estava destinado a fazer face a despesas com doenças. E tinha razão pois acabou por despender algum com a sua enfermidade final. Também a mulher não ficou barata na morte. Mas ainda sobrou uma boa maquia para a Fátima. Por tudo isso, o soalho de tábuas de madeira, excepto na cozinha, rangia sob os passos de quem o pisasse. As janelas tinham duas abas envidraçadas com cortinas e, no interior, havia umas portadas em madeira que, já empenadas, eram difíceis de ser bem fechadas e assim dar maiores garantias quanto à não entrada de indesejáveis. O Monge, pastor alemão velho mas ainda bonito de bem tratado que era, constituía a guarda avançada da casa e propriedade circundante, agora bem pequena.
Estávamos no início do Outono e ainda não viera nenhum daqueles temporais que a Fatinha tanto temia. Desde pequena que tinha pavor às trovoadas e agora só, naquela casa lúgubre, fria e isolada de todas as outras da povoação, às vezes pensava em como reagiria perante uma tempestade das fortes. Na procelosa noite sequente a um dia de temporal, a amedrontada Fátima fechou todas as portas e janelas o melhor que conseguiu. Encarcerou-se no seu quarto juntamente com o fiel Monge e preparou-se para dormir, não sem antes tomar um calmante dos que usava quando tinha insónias. Ouvia-se o sibilar de uma ventania desenfreada lá fora, os ruídos das ramas das árvores, mesmo que distantes, o bater da água nas vidraças. Um tremelicar da luz precedeu um ribombar barulhento e amedrontador. A Fátima tremeu ao pensar que, pela primeira vez, iria estar sozinha debaixo de uma trovoada. Após aquele primeiro sinal de aviso resolveu deitar-se. Não teve tempo. Um novo trovão atordoou a sua cabeça e pouco depois a luz apagou-se. Rastejou até à cama, subiu para ela, meteu-se debaixo da roupa e chamou o cão: - Monge! Anda para o pé de mim! E o animal subiu para se enroscar sobre os lençóis e cobertores junto da dona. Com a escuridão, podia ver-se a luz dos relâmpagos a penetrar no quarto através das frinchas das velhas portadas. O som estrondoso que se lhes seguia deixava a mulher cada vez mais aterrorizada. Meteu a cabeça debaixo da roupa na tentativa de nada ver e nada escutar. De repente, ouviu o soalho ranger algures dentro de casa. Sentiu martelar-lhe nos ouvidos uns passos que se íam aproximando da porta do seu quarto. Lentos, cadenciados e cada vez mais audíveis. Chegou-se para junto do cão, moveu a cabeça para fora dos panos e disse: - Monge! Fareja quem está lá fora! Mas logo um novo relâmpago a fez ver um vulto dentro do seu quarto. A mulher estava em pânico! Enroscou-se de novo debaixo dos tecidos que cobriam a cama e ficou à espera de ser atacada. Várias facadas? Um golpe certeiro de machado? Ou seria um violador? E o cão não reagia. Maldito! Um novo estrondo fê-la tapar os ouvidos com as mãos. Mas o soalho dentro do quarto rangia sob os passos pesados e compassados daquele que seria, certamente, o seu carrasco. Ouvia-lhe a respiração. Paralisada, esperou a estocada final rezando pela salvação da sua alma. E foi ficando assim, petrificada, incapaz de se mover, vencida pelo medo, à espera do ataque do seu algoz. - Ajudai-me, Senhor! – pensava. - Avé Maria, cheia de Graça... – orava.
Eram cerca das dez horas da manhã quando tocou o telefone. Ouviu-o porque tudo agora era silêncio. A tempestade parecia ter passado. Apercebeu-se de que tinha acordado. O Monge já estava sentado no chão. Olhou ao redor e não viu marcas de nenhum assaltante. Entretanto o telefone parou de tocar. Sentia outra disposição, agora. Destapou-se e saltou para fora da cama. Foi abrir as portadas das janelas. Caminhou resoluta para a porta e colocou a mão na chave. Rodou-a, ainda um pouco a medo, e abriu-a com um pontapé: - Monge! Busca! O canino saiu do quarto e ela seguiu-o, primeiro com o olhar depois caminhado atrás dele. Tudo parecia normal. Voltou ao quarto e espreitou para debaixo da cama e para dentro do guarda-roupa; nada nem ninguém lá estava escondido. Aproximou-se duma das janelas e olhou atentamente para as casas menos afastadas: havia estragos. Vizinhos com os seus bens atingidos estavam já a tentar reparar os danos. Muitos ramos de árvores espalhados no chão. Arbustos derrubados. Pequenas extensões de muros tombados. Telhas quebradas nos pavimentos. Vidros partidos. A confirmação, se necessária fosse, de que houvera borrasca forte durante a noite. Abriu a vidraça. - Então, Fatinha! Mas que temporal tivemos esta noite! E ainda não há luz. Tem muitos estragos? – disse um homem de meia idade com um aspecto campesino que ía a passar nesse momento junto à casa isolada. - Ainda não vi! Só acordei agora – respondeu a mulher. Um carro parou junto da casa. De lá saiu o colega Alberto: - Estás bem, Fátima? Como não apareceste no trabalho à hora habitual pensamos que tivesses tido problemas. E como não atendeste o telefone, resolvi vir cá. - Obrigado, Alberto! Adormeci tarde por causa da tempestade. Mas ainda tenho de ver se há alguns danos na propriedade. - Ainda não há luz em muito sítios mas logo, a meio da tarde, já tudo deve estar normalizado. É o que diz a malta da EDP. - Com a luz do dia dá para fazer uma vistoria, sobretudo ao telhado. É fácil. Subo ao sótão e vejo se entrou água. - Parece que estás bem! – opinou o Berto. - Agora estou! Mas passei uma noite horrível. A trovoada deixa-me em pânico e agora que vivo aqui sozinha, é muito mais complicado. - Tens de te casar, rapariga! Quanto mais não seja nas noites de trovoada – disparou, trocista, o colega. - A brincar que o digas! A brincar que o digas! – respondeu ela, lembrando-se da pavorosa noite em que o sono acabara por vencer o medo.
|