anamarques
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« em: Abril 08, 2008, 18:32:55 » |
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Vinde ouvir a minha história meus senhores, que eu sou Coisito o piolho matreiro de rara estirpe. Vivo numa cabeça asseada e cheirosa. Sim, meus amigos, não vos surpreendeis. Piolho moderno não aprecia imundice. Isso é história do passado dos pobrezitos de nossos avós. Nós os ganaus do século XXI vivemos nas cabeças dos colégios particulares onde aprendemos a ler, a escrever, a contar e alguns, os mais dotados, até a desenhar. No dia em que minha mãe depositou a meia dúzia de ovos na qual eu me encontrava, exclamou para meu pai: “ Chiça, acabei de cagar o último coisito do dia†. O meu pai sorriu achando graça à expressão da sua dedicada esposa. Quando saà da casca disse ela: “ Olha, Jaquim, nasceu-nos mais um coisito!†E foi assim que fui baptizado. Logo que deixei a minha lêndea oca esfreguei-me todo no escalpe que era o meu belo lar. Macio, luzidio e apetitoso. Cabelos castanho-claros de reflexos quase louros, densamente implantados num couro cabeludo tenrinho. Um luxo. A minha infância de dois dias foi uma delÃcia. Era só injectar o analgésico na pele e sugar o sangue. A minha saliva ficava na pele mas era tão inóqua que não causava alergia. Em seguida defecava um montinho da refeição anterior digerida. O meu hospedeiro não se coçava e assim podia assistir calmamente ao B-A-BA entre as refeições, ou seja, de hora a hora. Passados mais três dias éramos uma densa população e já começávamos a sentir uma certa irritação por andarmos aos encontrões com os nossos familiares. Alguns já nem sequer nos lembrávamos deles. Mas a maioria sabÃamos bem quem era e não gostávamos nada deles. O espaço era escasso para tanto irmão, irmã, primo, cunhado, sobrinho e filho do enteado. Andávamos de mau humor. O puto, para complicar, começou a coçar-se. Pimeiro era só de dia. Depois nem de noite parava. Porra, nem dormir era possÃvel. Já não nos conseguÃamos concentrar durante as aulas nas contas de somar. E logo na altura que começara a tomar o gosto pela matemática. Um dia meu pai, que era agora um venerável ancião de trinta dias, reuniu a malta toda numa clareira e disse: “ Gasitos do meu coração. Por mais que me doa a alma ao pensar que me separo de vós,tendes de ponderar a busca de novas cabeças para habitar. Cada adulto macho tem a responsabilidade de criar a sua própria prole. A continuação da espécie é responsabilidade de cada um de nós. Não deixaremos de honrar os genes dos nossos antepassados.†Foi largamente aplaudido por todos. Eu com lágrimas nos olhos decidi que daquela noite não passaria. O puto brincava com o pai e no primeiro encosto eu passei sorrateiro de um lado para o outro com a minha Carla Vanessa. No segundo dia já tÃnhamos doze rebentos ladinos, todos irrequietos aos pulos de um lado para o outro. Uma cabeça lavada, desembaraçada para a expansão da minha famÃlia adorada. Parecia um sonho. Até que começaram as viagens de automóvel. Não é que enjoássemos, não. Piolho que se preze está apto a movimentos bruscos. Mas o que não podÃamos suportar era a música de concertina que o homem não se cansava de ouvir sem parar. Sempre a mesma cassete de um tal Trio Cova da Beira protagonizado por um tal de Alziro Galante que se fazia acompanhar por um filho e um parente obscuro. Um dia nisto e perdemos a alegria de viver. Nem o sangue nos sabia bem. Resolvemos tentar a fuga, de noite, para a cabeça da esposa. Lá passámos pé ante pé sem grandes sobressaltos. A madame era fina de dia mas de noite ressonava que nem uma bácora. Amanhecemos em festança. Sugámos até mais não podermos. Regalámo-nos em sangue novo e fresco. Que bom perfume tinha a cabeleira daquela beldade madura. Mas em breve serÃamos de novo surpreendidos pelas agruras do destino. A senhora vestiu-se com toda a displicência e quando demos por nós estávamos na calha do cabeleireiro. A sermos besuntados de tinta tóxica letal. Foi um holocausto. Só sobrei eu e a minha mais nova, a Antónia Marisa. Que nos pusémos a andar outra vez para a cabeça do puto. Ainda por lá andavam a vaguear uns piolhitos raquÃticos que tinham sobrevivido aos repetidos tratamentos com champô insecticida anti-piolhite aguda. SabÃamos bem que aqueles produtos, embora pouco eficazes acabam por moer a queratina de um gajo. Os pobres amigos estavam metade do nosso tamanho. Em poucos dias nos habituámos uns aos outros e agora somos todos irmãos. A vida moderna não permite que a guerra seja contra nós vencida. Por cada um que matam nascem mais seis por dia. E eles têm tanta compra para fazer, tanta novela para ver que a tarefa árdua de nos dar caça acaba por ficar relegada para segundo plano. Ou quantas vezes para terceiro ou quarto. Graças a Deus!
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