Antonio
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« em: Março 15, 2008, 14:16:57 » |
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Este é o oitavo e último artigo de uma série em que escrevi sobre as minhas experiências em África
A fama de que tirar a carta de condução em S. Tomé era mais fácil do que beber um copo de água já vinha de longe. Logo nos primeiros dias da nossa estadia toda a marujada sem carta de condução, ou alguns que já a tinham mas pretendiam obter a de pesados ou a profissional, se dirigiu à Direcção de Viação da Província Ultramarina. Eu, que não tinha carta, fiz o mesmo. E aquilo era realmente muito simples. Mais ou menos assim: No primeiro dia metia-se a papelada e tinha-se uma aula sobre o Código da Estrada. No segundo fazia-se o exame de Código e tinha-se uma aula de condução. No terceiro fazia-se o exame de condução e, passados mais dois ou três já estava na nossa mão o precioso documento. Eu fiz o mesmo que os outros mas, aquando da prova prática de domínio da viatura, ía causando um ataque cardíaco ao examinador, que era um senhor de cor branca. Arranquei com os pneus a plissarem, depois fiz umas manobras de estacionamento que iam provocando a queda de mais árvores do que um furacão de grau 5, e terminei em beleza com uma derrapagem na areia do pavimento, sendo que só a minha extraordinária perícia evitou que batesse num veículo estacionado junto ao passeio. O carro do exame ficou a uns 10 cm dele. Mas o senhor branco, possivelmente por eu ser oficial, não simpatizou comigo e reprovou-me. Julgo que fui o único branco em toda a história de S. Tomé que chumbou num exame de condução. Já estou a ouvir os meus pacientes leitores a dizerem: - E ele não tem vergonha de estar a escrever isto? Claro que não tenho! Antes pelo contrário! Sempre gostei de marcar alguma diferença em relação aos outros e, por isso, até estou orgulhoso. O senhor branco é que tinha inveja de mim, tenho a certeza. Alguns dias depois fui repetir o exame com o Sr. Américo, um simpatiquíssimo e barrigudo negro santomense que me fez dar um grande passeio pelos arredores da cidade (para eu poder apreciar as belezas paisagísticas daquela bonita zona da ilha) e, ao fim de uma boa meia hora de passeio, terminou o exame e elogiou muito a minha técnica serena de condução: - Não percebo porque reprovaram o Sr. Tenente no primeiro exame. O senhor conduz muito bem – disse ele. Portanto, e ao contrário da fama que tenho, fica agora bem demonstrada a minha vocação para o volante. Se alguém tiver dúvidas, que venha dar uma passeata comigo.
A bordo do Rovuma, a chefia dos vários serviços era repartida pelo imediato e pelo 3º. Eu tinha a meu cargo os Serviços de Navegação, Comunicações e Artilharia. Mas era o de Navegação o que mais ocupava o meu tempo. Uma das mais interessantes e nobres aplicações do meu “know-how” era feita numa operação que executávamos de quinze em quinze dias. Tratava-se da captura de um saborosíssimo marisco, ao qual chamávamos caranguejos de Moçâmedes devido às semelhanças com os bichinhos tão apreciados em Angola. Acontece que, para os apanhar, tínhamos de colocar um côvo com estrutura em vara de ferro soldado tapada por uma rede de arame e com as aberturas numa disposição cientificamente estudada. O côvo tinha de ser lançado à água preso por um longo e resistente cabo. Quando se sentia que tinha pousado no fundo do mar colocava-se um bidão pintado de vermelho preso a ele, a flutuar e, no dia seguinte, íamos ver os resultados da pescaria. Mas qual a importância do meu papel? Enorme! Porque esses apetecidos crustáceos só se encontravam a uma profundidade de 350 a 400 m. Como já referi que a ilha era um enorme pico cónico de que só uma parte era visível, e com um acentuadíssimo declive, a distância na horizontal para que o côvo caísse no local certo era de uma dúzia de metros, e era eu que da ponte onde ficava a riscar as cartas de navegação e tirar uns azimutes gritava: - Larga agora! E o guincho do navio permitia que caixote e fio descessem o mais depressa possível para evitar que a ondulação e o vento afastassem o navio do local certo. Era ou não crucial o meu desempenho? Pois era! Uma vez aquilo correu mal e, quando recolhemos a pescaria puxando o cabo preso à caixa com o guincho, em vez das dezenas dos animais pretendidos vieram só seis lavagantes. Agora já devem estar a imaginar que, nos dias seguintes, as refeições eram só de caranguejos gigantes bem cozidos e temperados acompanhados por umas loiras cervejas, muito frescas. Quando já estávamos cheios de saborear marisco, voltávamos à comida normal para desenjoar. Só um aparte para dizer que o navio tinha, naturalmente, umas arcas frigoríficas onde a bicharada era convenientemente conservada.
Já ouviram falar no brigadeiro Pires Veloso? É um militar, actualmente aposentado ou qualquer coisa do género, tio do cantor, guitarrista e compositor Rui Veloso que foi enviado pelo MFA (Movimento das Forças Armadas, para os mais novos e menos informados destas coisas do PREC – e agora tenho de dizer que estas siglas significam Processo Revolucionário Em Curso) para S. Tomé e Príncipe como Alto-Comissário. No arquipélago nunca houvera a mínima acção de guerrilha ou contestação significativa ao colonialismo. As ilhas eram demasiado pequenas para permitir que tal acontecesse. Só depois do 25 de Abril é que para lá foram alguns dirigentes do MLSTP (Movimento de Libertação de S. Tomé e Príncipe) que estavam em Livreville, no Gabão e começaram a haver alguns desacatos. Antes, só as rixas entre os santomenses, muito pobres e pouco dados ao trabalho e os imigrantes cabo-verdianos, mais trabalhadores e capazes. Perante alguma insegurança que se começou a criar entre a população branca, também esta começou a manifestar-se. Uma tarde, ainda Pires Veloso mal tinha aquecido o lugar, viu-se rodeado na rua por umas dezenas de colonos que lhe faziam as suas reivindicações. Em determinado momento, uma mulher mais exaltada não esteve com meias medidas e pregou duas chapadas no Alto-Comissário que seguramente as guardou como uma das suas melhores recordações da curta estadia por aquelas paragens africanas.
Durante o período de três meses em que estivemos naquelas terras (com uma intermitência de cinco ou seis dias para vir a Luanda buscar farinha para pão que se havia esgotado nas ilhas) só fomos ao Príncipe duas ou três vezes. A viagem demorava seis horas, se não me engano. Ficávamos lá a dormir (aliás, durante todo o período de permanência em S. Tomé sempre todos dormimos no navio) e regressávamos no dia seguinte. Quando constava que lá íamos, dezenas de pessoas vinham pedir-nos boleia e, assim, evitavam pagar a passagem num barco de carreira entre as duas ilhas. Normalmente aproveitávamos a viagem de ida para fazer uns exercícios de tiro com as duas Bofors de 70 mm, as metralhadoras pesadas que estavam implantadas no convés. Uma a vante e outra a ré. A primeira viagem ainda foi feita sob o comando do Silva Dias. Mas este terminou a sua comissão de serviço quando estávamos na ilha e foi substituído pelo comandante Nunes Ferreira que não tinha, nem de perto nem de longe, a “classe” do seu antecessor, mas era um sujeito muito simples e acessível. Aliás, a relação entre toda a gente foi sempre magnífica. Mas voltemos à vaca fria. Escrevia eu que na viagem para a pequena ilha do Príncipe atirávamos uns bidões à água e, como eu era o chefe do serviço de Artilharia, como já tive oportunidade de referir, colocava-me na ponte de onde dava as ordens de tiro. Nunca tive oportunidade de ver, mas parece que os nossos passageiros se borravam de medo com os estrondos e a trepidação que abalava o navio. Na rota para o Príncipe passávamos junto ao ilhéu dos Pássaros, uma rocha que emergia achatada das águas e onde viviam e nidificavam várias espécies de aves. Pouco depois começávamos a avistar a segunda ilha do arquipélago e, olhando um pouco para estibordo (que é como quem diz, para a direita) podíamos ver o ilhéu Caroço, mais conhecido por Boné do Jóquei pois a sua silhueta era tal e qual um chapéu dos ditos. Conforme nos aproximávamos do Príncipe podíamos ver que era muito rochosa mas, de tal modo revestida de vegetação, que esta nascia mesmo nas mais estreitas fissuras das pedras. O navio entrava na baía de Santo António ao fundo da qual ficava a cidade (de facto era tão pequena que lhe poderíamos chamar aldeia) de Santo António do Príncipe. Como as águas eram muito pouco profundas, fundeávamos a alguma distância e depois vinha uma barcaça de fundo chato transportar-nos até terra. Íamos saudar o capitão do pequeno destacamento do Exército que lá estava estacionado, que nos recebia na sua casa onde vivia com a mulher e uma jovem secretária. Juro que não quero ser má-língua mas, perante a forma como se olhavam e tratavam entre si, ficamos sempre com a impressão de que aquilo funcionava no estilo “ménage à trois”. Que Deus nos perdoe, se nos enganamos! Tive a grata surpresa de lá encontrar o Zé Albuquerque, colega do curso de engenharia e que estava meio apanhado por tanto isolamento. Ele próprio o confessou. De facto aquilo era uma pasmaceira total. E como não havia estradas transitáveis fora da cidade, só praticando montanhismo se podia ir a outros pontos da ilha. Visita imprescindível era aos tartarugueiros, artesãos que faziam interessantes peças a partir da carapaça de tartaruga. Ainda guardo algumas. E o regresso era sempre saudado por todos nós, efusivamente. A beleza natural não é tudo, especialmente quando se tem vinte e poucos anos.
E assim termino este conjunto de historietas, narrativas ou descrições a que dei o título de “Pelos caminhos de S. Tomé”.
(escrito em 16 de Novembro de 2005)
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