Nação Valente
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outono
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« em: Maio 17, 2016, 20:55:31 » |
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I José e Maria tiveram um casamento de sonho. Nem podia ser de outra maneira.Tudo levava a crer que foi preparado no céu. Nasceram no mesmo dia, no mesmo ano e na mesma maternidade, na então capital da província de Moçambique, Lourenço Marques. Oriundos de famílias da burguesia colonial, brincaram juntos, frequentaram as mesmas escolas, fizeram o mesmo curso. Formados em direito começaram a praticar advocacia na mesma empresa. Depois da descolonização regressaram ao país e instalaram-se em Alcobaça onde abriram o seu escritório de advogados. A sua relação era como a de Deus com os anjos. Tiveram dois filhos desejados e feitos com muito gosto. Maria dizia às amigas mais íntimas que José era um amigo leal e um amante fervoroso. Na cama ou fora dela estava sempre disposto a provar-lhe o seu grande amor. Felizes e juntos quase vinte e quatro horas por dia. E digo quase porque José tinha um vício que dispensava a companhia da mulher. Todas as quintas e domingos partia de manhã para seu hobby de caçador, mas ao fim desses dias regressava a cada cansado mas orgulhoso com os seus troféus de caça. A pouco e pouco o comportamento de marido exemplar começou a sofrer algumas alterações, que preocupavam Maria. José deixou de mostrar a mesma fogosidade. Justificava-se com o trabalho, o acompanhamento dos filhos, a perda do viço por causa da PDI (puta da idade). A esposa dedicada estranhou tal quebra mas procurou compreender. Os sinais de alerta chegaram quando José se recusou a cumprir as suas “obrigações conjugais”, alegando incapacidade total e até chegou a sugerir à mulher para se desenrascar, o que em linguagem popular significava “tens via aberta para me enfeitares com uns chavelhos”. Ao fim de um ano de sexo zero, Maria começou a perder a paciência e resolveu pôr a boca no trombone. Primeiro queixou-se aos mais íntimos, depois alargou as lamúrias a familiares. As palavras são como as cerejas e a incapacidade de José era assunto alargado de conversa entre o círculo de amigos. Foi aí que a família se reuniu e tomou a decisão de travar o bate boca antes que fosse assunto de falatório em toda a Alcobaça. Todos estavam de acordo que aquela caça tinha cachorro e que a Maria andava a fazer figura de tansa. As primas Sabinas, duas gémeas de pelo na venta e faro de detective foram encarregadas de vigiar o impotente. As gémeas acompanhadas de Maria e da prima caçula Tatiana, ainda uma menina, seguiram José quando partiu para a caça. Foram num carro alugado para não levantarem suspeitas. O caçador parou a sua viatura junto ao mercado de Rio Maior de onde saiu pouco depois com coelhos perdizes e lebres pendurados na cartucheira. A caçula que era saída da casca comentou: -“mas o tio é um caçador de caça morta”. José Voltou a entrar no carro para uma curta viagem até a uma rua próxima. As gémeas anotaram que o tio entrou no número 69 da praça das Sardinheiras. Estacionaram e ficaram à espera. O tempo passava e nada bulia. Apenas a sombra ia minguando e cedendo o seu lugar a um sol impiedoso. Eram duas da tarde quando José saiu daquele lugar, enquanto da janela uma mulher lhe mandava beijinhos . Uma das gémeas registou na Kodak a cena para memória futura. Maria não se conteve e saiu disparada do carro, seguida das gémeas e da prima caçula. Aproximou-se do marido e no papel de verdadeira tansa perguntou: -Afinal o que se passa aqui? Exijo uma explicação. II A patrulha da GNR constituída pelo cabo Bicho Rato e pelo soldado Carvalho Abegão, militares e primos nados e criados em Pias, faziam a ronda da tarde montados em duas pilecas sem idade, e compradas num leilão aos ciganos. Nesta ronda pós-almoço paravam, invariavelmente, na tasca do Pisa Gatinhos. Em cima dos muares tomavam o mata bicho, um aperitivo e um digestivo, um três em um, que juntavam para não perderem tempo e por ser, em pacote, mais económico. Para o cabo Bicho Rato era gota de água que fazia transbordar o copo, e logo ali em cima da mula Etelvina caia num sono profundo, numa merecida sesta. As duas bestas de quatro patas desciam a rua para as Sardinheiras levando os seus condutores em piloto automático ligado pela rotina diária, quando o macho Bonito relinchou e alertou Carvalho Abegão para um ajuntamento de pessoas aos saltos e aos gritos ao fundo da praça. O cabo continuava mergulhado no seu sono, indiferente ao que se passava à sua volta. -Acorda Bicho , disse Abegão. A mula Etelvina sacudiu a cauda para dizer que estava acordada, mas o cabo Bicho nem tugiu nem mugiu. -Acorda Bicho Rato? -Respeitinho soldado Abegão. Isto não é o da Joana. Aqui estamos ao serviço da lei e da grei, não há tratamento informal, grunhiu Bicho Rato meio entaramelado. -Desculpe nosso cabo, mas temos uma ocorrência no horizonte e precipitei-me. -Vamos lá ver que moenga é aquela. Parece perturbação de ordem pública agente Abegão. Chegamos lá e damos-lhe umas bastonadas. -Calma e pára o baile. Esqueceu-se do 25 de Abril? Já não estamos no tempo da outra Senhora nosso cabo! Ainda não mudou o chip? Agora tudo protesta, tudo berra e nós temos de piar fininho, se não apanhamos com um processo. É isto a liberdade. -Adiante. Vamos lá acelerar os animais. -Acorde nosso cabo. Estes infelizes não aguentam uma mudança. Quer ver? Arre macho. Nada, tudo na mesma. Se os apertamos ainda morrem de ataque cardíaco. E eu não quero problemas com o Comando. Havemos de lá chegar. -Deixa-te de me dar lições, primo Abegão. Já me basta a Etelvina que tenho lá em casa a moer-me a cachimónia. Sempre que lá chego e quero dar “uma gaitada”, logo vem a conversa:” raio do velho gaiteiro só pensa nisso. Vê-se que anda de costas direitas. Se fosses como eu, uma mula de carga, que cozinha, lava a roupa, passa a ferro, faz comida, não andavas tão assanhado. Mexe-te Etelvina , mula trôpega. Se os equídeos falassem língua de gente, que não falam, teriam ouvido a Etelvina dizer: -“Já viste isto Bonito? Estes dois chaparros barrigudos que temos que carregar por mal dos nossos pecados a desrespeitar os nossos direitos? Julga que eu sou a mula que tem lá em casa. Devíamos deitá-los borda fora. -Mas Etelvina, deitar borda fora não é nos barcos? -Ó Bonito com esta idade ainda não ouviste falar de linguagem conotativa? -Cono quê Etelvina? Isso não é daquele filme que agora está na berra," O Último Tango em Paris". -Bem, deixa pra lá. Estamos a chegar...
-Mas que é isto? Insistiu Maria, exijo uma explicação. -Vamos embora daqui amorzinho. Eu vou explicar. Não é nada do que estás a pensar. -Boa tarde senhores cidadãos, disse o guarda Abegão. -Uma gaita, disse Maria descendo o nível de menina bem-nascida, quero saber o que fazes na casa desta cabrita. -Boa tarde senhores cidadãos. Que bagunça é esta? repetiu o guarda. -Cabrita é a tua tia ó cara deslavada, pensas que ainda estás lá em Lourenço Marques, agora Maputa, a mandar nos pretos? Disse a jovem dona da casa, que entretanto se juntara à discussão, apenas vestida com a camisa de dormir transparente. -Cala-te ou arranco-te a carapinha, morena de Angola, com o chocalho na canela, como diz a canção. -Boa tarde senhores cidadãos. Estão todos presos por perturbação da ordem pública, por ofensa ao pudor e por descaminho de menor para uma cena de pornografia. Vamos para o posto.
III O sargento Teodorico Feijão estava nas suas sete quintas. A ronda da tarde era a sua hora zen. Depois de beber um wisque espreguiçava-se na cadeira, esticava as pernas, punha as botas na secretária, acendia um charuto cubano e partia para sonhos irrealizáveis. Estes e o vício da caça, eram os únicos prazeres de que usufruía. Trocara o celibato pelo carreira. Nunca teve companheira regular. Aqui e ali ia tendo encontros fortuitos. Desde que viera dos Açores, a sua terra de origem, para Rio Maior, que frequentava a casa da Laurinda mas isso fora vinha que já dera uvas. Por causa de problema da próstata há muito que perdera a virilidade. A Laurinda bem se esforçava com toda a sua arte e experiência mas não havia nada que ressuscitasse aquele defunto. Vingava-se no Wisque que guardava secretamente no seu armário. Os guardas da ronda desmontaram e encaminharam os prisioneiros para a esquadra.O sargento acordou com o barulho que se aproximava. Estranhou aquele burburinho. Que raio se está a passar? Pensou. Será mas uma ocupação selvagem dos comunas? Retomou a sua postura de comando e esperou. -Dá licença meu sargento? disse o Bicho Rato. Demos ordem de prisão a estes cidadãos porque estavam a perturbar a ordem pública e não acataram as sugestões das autoridades. O sargento ordenou que se sentassem e começou o interrogatório - Então vamos lá saber quem quer começar a depor. -Posso ser eu, disse Maria. O meu nome é Maria da Conceição Alberto Pereira da Silva, de profissão, advogada. Há muito que desconfiava que o meu marido me traía resolvi espiá-lo e hoje apanhei-o com aquela desavergonhada que está ali fardada, desculpe a expressão, de puta, e aí perdi as estribeiras. -Não fosse por respeito ao senhor sargento e eu dava-te a puta ó “branquela” desengonçada. Que culpa tenho eu que tenhas um ferrari e não tenhas unhas para o conduzir. Respeito por este posto, atalhou o sargento. Como se chama a menina? -Rute Marlene, senhor sargento -Você confirma que é amante do marido da doutora Maria -Não confirmo nem desminto que sou amante do Zequinha, perdão do senhor Zeca. Acontece que o meu homem, um traste, foi preso e eu fiquei com muitas dificuldades. Aí conheci o senhor Zeca no mercado, e ele depois de saber da minha situação começou a ajudar-me. Uma alma pura. Todos os dias de caçaria me vai levar um animal para cozinhar. Não é para me gabar senhor sargento, mas sou boa cozinheira. Faço uma lebre escalorada de lamber os beiços. Comemos e nada mais. Não é senhor Zeca? Rute Marlene agitou-se na cadeira cruzou e descruzou as pernas, sacudiu as ancas, esticou as mamas. O sargento embatucou e sentiu um movimento estranho entre as pernas. Milagre. O morto estava a ressuscitar. A custo retomou a compostura. -Senhor José, depreendo, confirma a versão da sua mulher? -Chamo-me José Maria da Consolação Marques de Sousa Jardim. Sou advogado. Não é verdade que tenha uma relação intima com a menina Rute Marlene. Como ela afirmou limito-me a ajudá-la devido à situação em que se encontra. Sou um marido fiel. E na família todos sabem que sofro de impotência. Não vou prestar mais declarações, quero tratar deste assunto em família. -Muito bem, disse o sargento, então se todos estiverem de acordo vamos encerrar aqui esta confusão. Os senhores doutores podem sair e devem-se entender entre pares. Isto é uma terra pequena e não há necessidade de alimentar escândalos passionais, Maria, José e as primas deixaram o posto acabrunhados. Rute Marlene levantou-se e mostrou o corpo inteiro por detrás da camisa transparente. O sargento comprovou a existência do milagre. -Sente-se menina Rute (ou prefere Marlene?). Temos que conversar e não está em condições de andar na via pública. O cabo Bicho e o soldado Abegão tem de ir dar de beber às alimárias. -As alimárias já beberam hoje, disse o cabo. -Escorregou-lhe o neurónio para a barriga nosso cabo? Em que Regulamento é que está escrito que as bestas só bebem uma vez por dia? Não percebe que elas são velhas e podem desidratar. Ponham-se na alheta. Eu preciso de dar apoio psicológico à menina Rute, depois das injúrias que sofreu. -E eu preciso mesmo sargento. -Trate-me por Teodorico . Vou-lhe buscar uma roupa adequada para ir para casa depois espero ver comprovados os seus dotes de cozinheira. Eu levo uma perdiz, que eu próprio cacei, para o jantar. - Com muito gosto Teo. Nunca cozinhei para um homem às direitas. E eu faço uma muamba de perdiz como nunca comeu. Vai comer e chorar por mais. E espero comer muitas vezes. Caça não vai faltar. A minha espingarda está bem municiada e não nega fogo.
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