O Acorde das Almas
“A vida é um fragmento destiladoâ€As teclas fluÃam-me sob os pálidos e singelos dedos, descrevendo cÃrculos complexos e viciantes num novo século que se consumia a si mesmo na monotonia que era a desgraça. Sim, disso tinha a certeza, e além de monótona, era inútil, vã como o tempo que não segue o seu trilho incontestável.
Tinha tudo previsto, no entanto irritava-me a demora com que os minutos passavam e o que era obrigada a fazer para o conseguir. Não importava, os fins justificavam os meios, e esses fins eram o meu
Tudo.
“Que te deixa presa na sagacidade do que queres.â€A tecla errada revibrou no ambiente denso do palácio, e um rosnar furioso fez-se ouvir. Enganara-me novamente, sempre e repetitivamente no mesmo e diabólico compasso. Tirei as mãos timidamente do piano, deixando-as descansar no colo, pronta para ouvir o meu mestre criticar e ofender-me.
O que fazer? Detestava aquele instrumento, e aquelas melodias alegres que me obrigavam a encenar e a tocar para a corte, num tom idÃlico desprezÃvel. Nada mais eram que hipocrisias. E eu queria a verdade, queria o som suave e triste que manipulava e, por fim, despedaçava a alma.
“Sussurra-te pecados destemidos, actos dramáticos desentendidosâ€Ergui-me do banco, antes que o meu mestre me impedisse e fizesse repetir toda aquela tortura até não existirem quaisquer imperfeições. Não voltaria a repetir a proeza, pelo menos com aquele ser nauseante mergulhado em perfume de narcisos. Dar-lhe-ia a conhecer o verdadeiro e sublime acorde dos anjos. Nada me faria mais feliz, nada me faria mais viva e nada me faria mais imortal.
- Onde ides, Senhora? – Perguntou-me Amaranto.
- Se me quiser seguir, mostrar-lhe-ei algo por que se irá apaixonar – declarei, escondendo o sorriso que senti, delicioso de prazer, florir nos meus lábios e brilhar nos meus olhos de esmeralda. Ao fim de tanto tempo, era só a sua voz que desejava ouvir, o seu canto acetinado.
- Ao que se refere?
- Limite-se a seguir-me e revelar-lho-ei.
O que mais poderia ele fazer? Poderia ser o meu enfadonho e teimoso mestre de piano, todavia a minha pessoa era a herdeira do que o rodeava, a primogénita e única filha dos senhores do condado, durante séculos.
“Que desejas por os temeres.â€Seguimos por um corredor claro, repleto de retratos antigos e inundado por uma luz que seria a do Sol. Nesse momento esses vagos pormenores eram supérfluos. A minha fome aumentava à medida que me aproximava de uma das salas de arrecadação que raramente era visitada, sem ser por mim, e pelos convidados que, por vezes, guiava até lá, no intuito de agradar, mais do que algumas vez imaginaram ou desejaram. No simples preâmbulo de um acorde, elevavam-se ao céu e, com sorte ou sem ela, não regressavam, pois tornavam-se eternamente meus.
Abri a porta bordejada a dourado e entrei, ouvindo o retinir ansioso dos meus saltos abafarem-se na camada de pó que cobria o chão. Não eram já visÃveis as marcas da minha última visita, mas o meu grande amor encontrava-se lá, esperando desejoso por mim.
“Oh! Não sentes, não ouves, não vês, na tua ânsia descabida de mortal!â€Ouvi a porta a fechar-se atrás de mim. E sabia que fora ele a fazê-lo. O meu mestre de piano olhava-me curioso, e intimamente receava. Para ele a porta fechara-se sozinha, talvez com uma forte corrente de ar, que por nenhum de nós fora sentida. Eram pequenos pormenores que o descuido e a insensatez deveriam ter levado em conta, mas não o fizeram.
Um sorriso audacioso crescia-lhe nos lábios de uma forma que se me afigurava inebriante. Retribui-lho. Nada como abrir o apetite aos outros, quando o nosso está já faminto. É da forma que será agradável para os dois... por poucos segundos.
Avancei por entre a desarrumação da ampla sala e pelos lençóis fantasmagóricos que cobriam a mobÃlia secular. Incentivei-o a fazê-lo também. Como era divertido senti-lo olhar-me daquela forma tão peculiar de expectativa! Definitivamente, esperava-o uma grande surpresa.
“O Tudo é florido, mas quando murcho é um desengano sem mal.â€Finalmente, a sala chegou ao fim. Uma baixa e larga cómoda poeirenta, com rebordos talhados primorosamente, repousava encostada à parede, e, sobre ela, jazia adormecido o meu amante no seu pequeno caixão negro, forrado de veludo vermelho.
O silêncio era tudo o que parecia rodear-nos naquela atmosfera pesada de semi-escuridão. Mas só os inocentes e descuidados se fiam nas aparências. Eu sabia o que se enclausurava naquele mausoléu da realeza e Amaranto estava prestes a descobri-lo. Muitos pensariam que não da melhor forma.
Mas o que sabiam os anciões que dizem dominar o que é fervoroso na sabedoria? O facto é que não o sei, mas uma coisa é certa, a vida que têm não supera a dos ignorantes que nada sabem e que são felizes. Era o que se passava com este pianista, pensava saber o que se iria suceder. O seu erro guiá-lo-ia ao nada do vazio, como um alquimista que se engana no ingrediente e não cria a Pedra Filosofal, mas um veneno que traçará o fim do que um dia começou.
“O prenúncio aproxima-se, e o canto de sereia aguarda por nós.â€O mestre de piano, apesar de não ter já a certeza de o poder chamar assim, observou-me inquieto, enquanto eu retirava aquele doce instrumento musical do seu lugar de repouso. Era negro como as vestes da morte, e brilhava no tom intemporal da sua foice, tal como os meus cabelos dourados.
Deixei-me ficar de pé, acariciando-o levemente antes de o levar ao ombro. Como me chamava intensamente, e como eu o desejava mais que ardentemente! Tão doce e suave, tão cruel e mortal, o meu etéreo violino negro.
Toquei levemente com o arco nas cordas esticadas que me embalavam e esperei, esperei por um sinal que não se demorou a vir ao meu encontro. Senti um toque frio na minha face, a mão de Amaranto. Nesse momento, o arco deslizou num tom fino e prolongado, fazendo saltar o meu coração, por vezes parado. Os meus lábios formaram uma palavra raramente pronunciada, enquanto tocava a pendente melancolia da música, sem suster o deleite que me invadia, o que levou o meu mestre a beijar-me a têmpora. No entanto, o “imploro-te†não se destinava a ele, mas sim ao meu amado suserano.
“Ressoa então sinfonia do alento, para que te oiçam no teu acolher.â€Os meus olhos estavam fechados quando, pouco depois de sentir uma mão na minha elegante cintura, ouvi uma tentativa de resfolegar, todavia uma tentativa infrutÃfera. Abri-os. Queria ver aquilo a acontecer.
Amaranto fitava-me horrorizado, apesar de só ver a beleza de um par apaixonado: uma jovem dama caÃda do céu e o seu conjugue agora quase visÃvel na sua palidez. O horror do mestre de piano provinha das dores que lhe banhavam o corpo, rasgando-lhe as entranhas pútridas, devorando cada pedaço que nunca mais seria seu. Era aquele o toque amaldiçoado dos anjos, o toque das almas.
Os acordes do violino continuaram a envolver-nos num labirinto que se tornava denso e tocável. Em meu redor o invisÃvel tomava forma e apossava-se do que lhe oferecia. Era a última, a milésima alma que era devida ao mundo que se anuncia para lá do que fica para trás.
“A ancestral magia do renascer é tua,â€Parei, exausta com aquela melodia esquartejante. Também a minha alma estava há muito retalhada. No entanto, a imortalidade vivera em mim como um pesadelo que se precede à bonança, e agora, chegara do fim dos mundos alguém para me sarar. Alguém por quem esperara e esperaria infinitamente nas eras do tempo.
Dois braços envolveram-me num abraço. Não era Amaranto. O seu corpo jazia vazio a meus pés, enquanto a sua alma se esvaÃa para não mais voltar. O sacrifÃcio final tinha sido executado, e os remorsos não se condensavam no meu coração. Só o queria a ele, o demónio que me conquistara na imensidão do Inferno que era aquele mundo. Para sempre juntos, alimentando-nos dos espÃritos que se libertavam com o canto sagrado dos deuses. Para sempre nosso seria o acorde das almas.
“E eu sou teu por te pertencer.â€