Maria Gabriela de Sá
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« em: Junho 26, 2016, 16:46:32 » |
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Dos meninos que iam ouvir Gabriela, a voluntária para as Quintas-Feiras lúdicas dedicadas à poesia e literatura, a Julinha era das mais atentas. Costumava sentar-se no topo da mesa, à sua frente. Olhava-a por dentro dos óculos que lhe pousavam no nariz, em que uma grave enfermidade adivinhada, mas sobre a qual nunca se atrevera a questioná-la, lhe deixara marcas, atenuadas por uma milagrosa operação que lhe restituirá parte da sua forma primitiva. Era como se Gabriela fosse ali levar-lhe a parte do mundo aonde Julinha nunca tinha podido ir. Não por não ter pernas e inteligência que a levassem lá, mas porque todos os caminhos de uma vida difÃcil de criança se haviam transformado em becos sem saÃda, que a faziam voltar para trás. - Venha sempre. É um gosto ouvi-la. Lê tão bem! Consigo todos os escritos ganham vida. - Aprendi com a minha mãe – respondeu a Julinha –. Ela só tinha a terceira classe. Mas lia como ninguém. Habituei-me a ouvi-la desde pequena. Às vezes, quando apanhava um ou outro romance, lia-nos, a mim e aos meus irmãos, algumas passagens, a qualquer hora. Nem sequer era para adormecermos. Pelo menos eu não adormecia. Queria saber sempre como a história acabava. Até que ela tinha de parar para tratar da vida dela e de todos nós. - Que bom. Eu fiquei sem mãe aos dez anos. Depois tive de ser eu a tratar dos meus irmãos mais novos. Lavava, se é que lavava, a roupa! Pelo menos dava-lhe as devidas voltas no tanque e punha-a na corda a secar. Cozinhava, e tratava da casa. Nunca fui à escola. Mas olhe que consegui aprender a ler o catecismo e coisas simples! - E quem lhe ensinou? - Fui aprendendo sozinha. Escrever é que é mais difÃcil. Mas, antigamente, ainda conseguia escrever uma carta que não fosse complicada. Agora é que não. - Sozinha? – Olhe que isso foi quase como descobrir a Ãfrica! Aprender a ler não é uma coisa assim tão simples para se aprender sem ajuda – contrapôs, dando ênfase ao empreendimento que Julinha, para lá dos oitenta, tinha levado a cabo com êxito há mais de setenta anos atrás. - Mas eu lá consegui. O meu pai, um homem ligado ar mar, fazia como eu. Também nunca andou na escola. Então começamos por tentar os dois a aprender. Antigamente, as casas dos senhores ricos aqui da beira-mar costumavam ter escritos à porta os nomes dos donos. E, sempre que eu andava na bicicleta com ele, os dois, quase ao desafio, tentávamos aprender as letras. Foi assim que começámos. As letras e os números. Aprendi assim a juntá-las. Depois, o resto, foi a partir dos catorze anos, quando comecei a trabalhar no Grémio da Comissão Reguladora do Bacalhau. - A Julinha é aqui da Gafanha da Nazaré? - Não. Nasci na Gafanha do Carmo. Quando casei é que vim para aqui. E tive um casamento bem feliz. Ainda hoje, passados vinte anos desde que enviuvei, sinto o lugar o lugar dele, em qualquer lado, muito triste e vazio – acrescentou com uma ponta de nostalgia, que nenhum outro conforto que o mundo lhe pudesse dar poderia fazer desaparecer. - Nada de tristezas. Especialmente hoje, a seguir a uma bela de uma sardinhada, com estas pessoas todas aqui, alegres, a comemorar os vinte e cinco anos do lar. - Não posso evitar… - Mas voltado à leitura…Então começou a trabalhar aos catorze anos… - A trabalhar comecei quase desde que nasci, a ganhar dinheiro pelo meu trabalho isso sim, foi nessa altura. - E o que é que fazia lá no grémio? - Depois de o bacalhau ser descarregado, tinha de ser separado por tamanhos e pesos. A seguir era metido em sacos em que estava escrito por fora a letras negras: miúdo, graúdo, crescido, corrente, especial. E não nos podÃamos enganar. O chefe era muito duro connosco. Então eu ia juntando as letras, e foi assim que consegui aprender alguma coisinha. Por aqui, a vida da maioria das pessoas era ligada ao mar e ao bacalhau. E que tenho inveja de si por saber ler tão bem e escrever. Ah, menina a minha vida dava um livro… Bom, a vida da Julinha do Lar da Gafanha da Nazaré talvez desse mesmo um grande livro, como daria igualmente um livro a vida de todas as pessoas que lá estão. Mas, por agora, foi a vida de Julinha que mereceu este pequeno apontamento. Uma singela homenagem a uma heroÃna a que estas letrinhas, escritas com amor, deram hoje um merecido realce.
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