anamarques
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« em: Abril 23, 2010, 16:40:27 » |
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*-Vai ver do gato. A liberdade que lhe concedo faz parte de um pacto que temos. Uma estranha amizade da qual não prescindo. Singularidades do solipsismo. - Sim, vou já, senhor AmÃlcar. Vou correndo que não quero perder pitada dessa história. E há-de me também explicar isso do solipsismo, não me vou esquecer que não quero morrer estúpido. Quem tem vergonha de perguntar tem vergonha de aprender... - Vá lá, vá. Traga outra manta. Arrefeço. - Já aqui está o Bichano. E a manta. Está melhorzinho assim? Pronto. Não queremos que se constipe. - Não quero não. Na minha peculiar idade podia ser fatal. - Ah pois, eu não deixo que se constipe senhor AmÃlcar... - Estava a ser irónico, Benito! Nada há mais fatal que o destino. Ou pensas que também ficas cá para semente? - Nunca se sabe, nunca se sabe... inventam tanta coisa... - Ora poupe-me! - Ai que já está a ficar mal disposto. Continuamos a história da Clara Catalão? Viu, agora já não me engano mais. Já não digo Carla Cortesão. Eu até não sou muito burro pois não? - Fino que nem uma raposa, Benito. Bem, onde é que ficámos? - O senhor AmÃlcar ficou aqui na caminha e eu fui lá a baixo ver do sacana do gato que deve ter andado à s gatas toda a noite. Está mole que nem papas. - Esperto que nem um trasgo! - O Bichano? -Não! Você, meu menino, você. - Ai que até fico corado com esses elogios! -Posso continuar? -Por quem é! -Já ouviu falar com certeza no Holocausto. Quem não ouviu? Quem não terá já visto os filmes da praxe? A Lista de Schindlre, O Pianista, uma meia dúzia de séries mais ou menos interessantes e as pessoas acham que já sabem tudo. Nem sonham que tudo isso não passa de eufemismos. E mesmo tudo o que eu lhe contar não passará de um eufemismo. Porque na verdade ninguém nunca saberá o que de facto se passou naqueles campos. As imagens que os Aliados filmaram quando libertaram os Campos de ExtermÃnio e que se implantaram no imaginário colectivo, aqueles corpos humanos que eram esqueletos, uns ainda vivos, se é que se pode chamar a tal condição de “vidaâ€... Essas imagens não nos transmitem o que era o tÃpico campo de extermÃnio nazi... - Ai não!? -Vê! Eu sabia que se admiraria. Esses mitos enraizados, essas verdades assentes em apenas uma parte da realidade... E no entanto as fotos foram tiradas, os corpos, mortos e vivos estavam lá para serem encontrados pelos soldados Aliados, coitados... Depois de toda a carnificina não estavam preparados para aquilo... - Estou confuso, Sr. AmÃlcar... - Calma, Benito, eu sei que sim. É natural. O que se passou foi que nos últimos meses de guerra, Himmler ordenou a evacuação dos campos de ExtermÃnio de Leste, a maioria na Polónia. Auschwitz, Treblinka, Chelmno, Sobidor... De maneira que os campos de concentração alemães, que não eram de extermÃnio, ficaram superpovoados sem que houvesse a possibilidade de assegurar o suprimento de alimentos. O extermÃnio que era levado a cabo nos campos de Leste não era pela fome era por gás. O método foi concebido para evitar causar o mÃnimo de dor e angústia à s vÃtimas de modo a ser o mais eficaz possÃvel. Pretendia-se matar o maior número de indesejáveis o mais rápido possÃvel. Muitos indivÃduos se empenharam em aperfeiçoar as câmaras de gás. Mudavam-se os gases para aumentar a rapidez da morte. Cremavam-se os corpos a seguir. Por isso aqueles esqueletos são uma minoria... Os milhões que morreram nunca ninguém os viu. Aqueles cadáveres eram gordos, obesos, magros, assim-assim... Mas nunca ninguém os viu pois eles foram reduzidos a cinzas. - Por isso existem aqueles que dizem que o Holocausto nunca existiu, que os números estão errados. - Não havia corpos para contar. E o pior é que aquelas pessoas que morreram já tinham deixado de existir. Apagara-se-lhes o registo de vida. Eram pessoas apátridas, desterradas, proscritas e indesejadas. E depois quando famÃlias inteiras são mortas quem fica para dar nomes à s vÃtimas? - Mas a Clara Catalão tem nome. - Tem. Mas esse nome fui eu que lho dei. - Era sua filha, Sr. AmÃlcar!? - Não, Benito. Se a Clara fosse hoje viva seria ainda mais velha que eu. - Estou baralhado. - Pois está, pois está. Se tiver um pouco mais de paciência com um velho cansado... - Ora ora, Sr. AmÃlcar, para a sua idade não podemos dizer que esteja cansado... - Touché novamente, Benito!
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