NunoMiguelLopes
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Não vou gostar nada do dia de hoje, pois não?
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« em: Novembro 24, 2009, 11:29:57 » |
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12. “A abordagemâ€
O hangar da Fortuna ficava na zona central do bojo horizontal da nave, e era à vontade umas dez vezes maior que o da Cry of the Angelus. Rawbone não teve dificuldades em acessar a escotilha transfásica e manobrar a Shortcut Tango dentro da enorme área de serviço. O experiente astronauta conseguiria fazer um looping ali dentro, se quisesse, e até queria. Mas não podia. A transfase decorreu sem problemas. As patas da pequena nave da Schola Belicus estenderam-se para encontrar o piso do hangar e suster o peso do veÃculo enquanto este descrevia um suave deslizar para o chão. Todo o exterior da nave começou a borbulhar e a reagir ao ambiente interior da Fortuna. Vapor ergueu-se do metal chapeado. Ãgua surgiu do nada e escorreu para o chão. Como chuva trazida até ali do espaço.
Stonewall foi o primeiro a emergir pela escotilha. A primeira impressão que o navegador da Cry of the Angelus experimentou foi um intenso aroma a amoras silvestres. Do tipo que se vendiam em pequenas lojas em sÃtios onde nem sequer existia atmosfera própria. Ou terra cultivável. O aroma das amoras silvestres, parecia-lhe, surgia sempre na sua vida em locais onde isso não era suposto acontecer. Locais impossÃveis como aquele. Fazia-o desejar pelo perfume de uma mulher. Pousou as botas no piso do hangar e deu alguns passos em frente, olhando em volta.
Podia ver três naves de pequena envergadura. Alinhadas na parede oposta. Ameaçadoras. Se a Shortcut Tango se assemelhava a um insecto, aqueles veÃculos seriam aves de rapina. Largos e planos, perfeitamente geométricos, o que contrastava com a criatividade louca e desbragada que caracterizava a Fortuna. Metal negro, tão negro que escondia grande parte das suas linhas. Por trás das naves, a parede subia até talvez uns cem metros de altura. O tecto do hangar era em redoma, as luzes nasciam daÃ. Flares perfeitamente reconhecÃveis. O local estava deserto.
Berrylight saiu da nave a seguir. Trazia a arma à cintura, pendurada e inofensiva. O soldado de vinte e seis anos movia-se elegantemente, alto, atento. Autumnsun passou por ele, despreocupado, como se aquilo fosse tudo seu, ignorando o protocolo e o olhar zangado de Berrylight. O Academiano trazia um par de óculos na palma da mão direita. Aplicou-os sobre as pálpebras e ligou-os no botão que ficava entre as lentes vermelhas. Depois, começou a fazer um scan holomático do local. Não se via ninguém. Passou à frente de Stonewall, que já se afastara uns quinze metros da Shortcut Tango, e não se deteve.
«Tenha cuidado» advertiu-o Berrylight, pondo-se ao lado de Stonewall numa posição de cautela.
«Tenha você por mim, Berrylight» respondeu Autumnsun, de costas para ele. «Estou ocupado.»
Berrylight e Stonewall olharam um para o outro. Nenhum deles tivera a ideia de trazer o diminuto génio para aquela missão. Fora ideias da Schola Belicus. Mais uma das decisões indecifráveis das chefias. Berrylight estugou o passo para acompanhar o saliente intelectual. O navegador ficou mais para trás, caminhando como um turista perdido num local lindo e misterioso. O chão atrás de si era a escotilha de vidro reatomizado com funções de transfase, através do qual a Shortcut Tango tinha entrado. O espaço profundo, em todo o seu negrume, aparecia enquadrado numa moldura rasteira em forma de rectângulo. Era como um poço escuro, rodeado por todos os lados por paredes brancas e brilhantes. Demasiado brilhantes. Se o astronauta as olhasse por muito tempo, adivinharia os sintomas iniciais de uma enxaqueca. Achou que era um bom sistema para obrigar quem quer que fosse que acabasse de chegar a olhar para o chão. O chão brilhava menos, mas os passos produziam um impacto estranho. Como se as suas botas deixassem pegada e, ao mesmo tempo, pisassem uma superfÃcie que não existia realmente. Que estava não ali, mas noutro sÃtio qualquer.
«Ah, bem, eis a nossa comissão de boas vindas» disse Autumnsun, apontando um dedo, e as suas lentes, na direcção de uma porta que pareceu recortar-se da parede à esquerda.
Duas mulheres. A que vinha à frente era alta, mais ou menos da mesma estatura de Berrylight. Era uma figura soberba que se aproximava, caminhando como quem sabia muito bem o que estava a fazer. Longas pernas trabalhadas, expostas generosamente por um manto curto, preto e descontraÃdo. Ancas redondas que faziam a curva para uma cintura não muito estreita. Cortadela decotada e de manga completa, a única coisa naquela mulher que se assemelhava a um uniforme de serviço. O preto e o laranja eram as cores caracterÃsticas da Athenacorp. O peito seria discreto, os ombros largos. Autumnsun reconheceu o rosto arredondado e as sobrancelhas escuras que coroavam olhos negros e profundos. O cabelo preto estava apanhado num rabo-de-cavalo que dançava ao som dos movimentos de Sulandra, a irmã do meio de Athena.
Atrás de si, não tão radiante, mais como uma sombra, na verdade, vinha uma mulher mais baixa e menos atraente. Vestia um manto negro, que a cobria dos pés ao pescoço e se confundia com o cabelo preto. Fisicamente era menos interessante que Sulandra, Autumnsun não desperdiçou muita da capacidade de armazenamento das lentes com ela. O rosto era branco pálido. Daria ideia de ter morrido há muito tempo não fosse por um par de olhos muito vivos, cinzentos e azulados. Nada amigáveis. Lábios muito finos e nariz altivo.
As duas pararam em frente a Autumnsun. Sulandra exibia uma postura perfeita, evocativa de uma sacerdotisa dos tempos já idos. Mas havia algo à sua volta, uma aura estranhamente furtiva, reptiliana na opinião de Autumnsun, que a interpretou como sendo uma qualquer qualidade predatória, ali à flor da pele. Vigilante, a dissecar aquela situação, esperando problemas. O jovem academiano preparava-se para se apresentar primeiro, mas Stonewall adiantou-se-lhe, chegando-se junto deles.
«Sou Stonewall, o navegador da Cry of the Angelus.» Estendeu a mão para a mulher mais alta, mais alta que ele. Apertou com firmeza. «Lidero esta pequena expedição.»
«Bem-vindos a bordo da Fortuna» saudou a anfitriã, de voz forte e sotaque acentuado. O facto dela ter suprimido a posição hierárquica do navegador não passou despercebida a esta. «Sou Sulandra.» Depois sorriu muito sofisticadamente. «Vocês da Schola Belicus têm um sentido de humor formidável.»
«Não percebo…» Stonewall inclinou a cabeça, ligeiramente. Franziu o sobrolho.
«A vossa co-piloto» explicou Sulandra, indicando com a mão a Shortcut Tango que estava uns cinquenta metros atrás deles. «Parece ser uma pessoa divertida.»
«Fableshade realmente tem o hábito de ser inconveniente» concordou Stonewall. «Se ela disse alguma coisa que vos tenha…»
«Não, não, de todo» replicou Sulandra, sorridente, interrompendo efusivamente o navegador da Cry of the Angelus. «Estamos há tanto tempo aqui, tão longe de tudo. E todos a bordo são tão aborrecidos e sérios…» Sulandra fez um gesto na direcção da sua companheira vestida de preto. «Esta é Ransomclan, a nossa aborrecida e séria comandante.»
«Apenas separo o sal das lágrimas do das gotas de suor para a patroa» disse Ransomclan, com uma rouquidão escondida. Tirando isso, apenas acenou, quase imperceptivelmente.
«Ela sabe lidar com crianças e idosos na mesma medida e é capaz de cozinhar uma caldeirada de polvo a nÃveis de competição» assegurou Sulandra, pondo o braço à volta dos ombros da comandante da Fortuna. Segredou-lhe ao ouvido, mas de forma que os recém-chegados a pudessem também ouvir: «Porte-se bem, querida comandante. Presenteie os simpáticos astronautas com a sua melhor expressão gentil, mas sempre com o cuidado de não lhes sorrir demasiado. A cortesia em espaço profundo é famosa pelo potencial que tem para ser romanticamente mal interpretada…»
Ransomclan sorriu imediatamente para os outros astronautas, fazendo dois deles sentirem-se pouco à vontade. Sulandra olhou para Berrylight, especialmente para a arma que ele trazia à cintura e sobre a qual descansava agora a mão direita.
«Pelos vistos, estava enganada» disse Sulandra, tornando-se séria. «A Schola Belicus não tem sentido de humor.»
«Oh, eles têm sentido de humor» garantiu Autumnsun, indicando Berrylight com uma mão errática. «Este é Berrylight, o homem-arsenal do Corpo Espacial, o rapaz que vos poderia reduzir a uma nódoa de proteÃnas mesmo se completamente nu e despojado das suas três camadas superiores de hostilidade.» Autumnsun olhou para Sulandra, que não parecia muito convencida. «Acredite em mim, que sou um intelectual aborrecido e sério. Não mentiria sobre uma coisa dessas…»
«Oh, é você o génio que mandaram vir de Academia?» Sulandra apertou-lhe a mão, visivelmente agradada.
«Autumnsun, sim…»
«Que bom! Eu leio tudo o que escrevem sobre si, Autumnsun» revelou Sulandra. Sempre no mesmo sotaque, uma máscara verbal de múltipla funcionalidade. O academiano ficou deleitado com o que ouviu. «A sua mente é muito importante, Autumnsun. Espero que não seja um daqueles estudiosos ensimesmados e caladinhos.»
«Não se preocupe…» murmurou Berrylight, mas de forma a que ninguém a percebesse.
«Não me parece que me reforme antes dos meus noventa anos, bem avançados» declarou Autumsun, orgulhoso. «Mais do que isso, não sei. Quero ter hipótese de ter tempo para aproveitar para fazer todas as coisas maravilhosas que um homem de cem anos pode fazer.»
«Ainda bem, faz muito bem…» Sulandra fitou Stonewall. «Vamos, Stonewall? A minha irmã está no pavilhão superior à sua espera. Ela quer muito falar consigo.»
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