Clamor Desoprimido

[Tere Tavares]

Clamor desoprimido

Num pedaço de jardim Ela sorria como quem aguardava um final de outono.
Era melancolia. Nuvens leves demoravam-se propositalmente para proteger-lhe os cabelos dourados. E aquele momento se estendia sobre os rumos esverdeados do céu. Eram pastores. E eram melancolias e pastores com duas mensagens. Como cintilações a enlaçar-lhe a cintura. E eram raios e melancolias e pastores com três filosofias: não aceitariam ter vindo por nada, não voltariam de braços vazios, não estariam ali se não para tomar consciência de si mesmos.

E Ela disforme numa lenda entre o que lhe separava e definia o entendimento: "A fada lembrou de mim". E seus poderes não se haviam esgotado. Chamava todos as dádivas. Vieram dizer-lhe que eram todas suas. Uma para cada vez que não fosse. Outra para cada vez que fosse uma. Nenhuma para cada vez que uma fosse outra.  E era uma e outra e nenhuma.

Levantaram-se os dias, as noites, as manhãs e as tardes. E todas as horas estavam submissas a Ela. Era Ela que se lembrava de quando era. E Ela se entretinha:
“Por que só uma partícula de sim dá um talvez a esta rua fria; uma súplica retida em cada rosto. Por que tenho, devo, não desisto, ouso – visto o desejo – não olvido, não atino, não consigo, exijo, faço meu coração de aço, imagino, não durmo, não digo não por que a dor dói a alma, a idéia, a fatia, o viço, a moldura da palma. Por que não sou e sou consagro o servo da ilusão, sorvo a obediência sem deixar o que me deixa natural o sorriso que mais sorrir me faz este mundo. Já não tece o pão parvo do povo. A noite imã já não toca. E, Deus! A dor messe já não bate para abrir o chão da gente que adormece o mais alto sussurro em abas fustigadas, o que possui e escuta, em alas pequeninas.
Abster-se de quem é de tanto, Senhor, como?
Argumentar o fio que brota, interpreta-lo à medida que chega; sem esperar, e esperando que ele próprio conduza a uma compreensão menos estranha, ou a um desentendimento não premeditado. Sou-vos grata, oh, alvos! ”

[luadepedra]

só uma partícula de sim dá um talvez a esta rua fria

E a prosa faz sentido quando se remete um olhar atento à conjugação do verbo "ser".

Belo, tere!

1 Bj*
Luísa

[Goreti Dias]

"Argumentar o fio que brota, interpreta-lo à medida que chega"
Um original texto!
Beijo

[Djabal]

Sermão da Nossa Senhora do Ó:
"Considerai a imensidade de Deus, e vereis até onde chega e se estende o significado desta pequena, ou desta grande palavra: In útero. Imensidade é uma extensão sem limite, cujo centro está em toda a parte, e a circunferência em nenhuma parte: Cujus centrum est ubique, circumferentia nusquam."

Não é preciso entrar no significado preciso, e saio dele renovado. Como se eu fosse Ela. Um fio da natureza, que tem todas as dádivas e nenhuma. Saber e sentir o existir simples. Mágico e maravilhoso. Música de Ravi Shankar. Efeito sem causa. Parabéns, minha poeta.

[Tere Tavares]

Luísa,
Faço absoluta questão de sua contumaz leitura. Obrigada!

Goreti,
Vindo de ti...aumenta a responsabilidade. Grata pela vinda.

Djabal,
"Como se eu fosse Ela" me diz muito, da sensibilidade, própria de quem, a partir de outro, consegue tranpor-se ao lugar deste outro, grandioso e humano. Obrigada.

Beijos a todos.

[Goreti Dias]

Eu é que agradeço a presença!
beijo

[Tere Tavares]

Goreti,
Grata pela sempre simpatia. Tua vinda é que é presente.
Beijão

Fabrícia,
Bem-vinda à minha escrita. Obrigada pelas palavras e incentivo.
Beijão

[Tere Tavares]

Julio,
Animam-me as tuas palavras e considerações; a prosa é uma paixão exigente!
Render-se a ela, domá-la, é constante desafio. Grata pela vinda. Abraços