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Autor Tópico: O ANJO E A PUTA  (Lida 1884 vezes)
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Vitor da rocha
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« em: Junho 20, 2010, 01:20:52 »

O ANJO E A PUTA 

1º

Maria Grila tinha cinquenta e tal anos e era a puta da aldeia. E de tal não tinha vergonha nem arrepeso, pois que se sentia mais útil que qualquer outra pessoa da terra, ofício igual ao seu só mesmo o do cura, o padre Alcino, que no confessionário limpava semanalmente pecados e nódoas, invejas e desejos, as almas lavadas, despejando a imundície no lenço que encostava ao nariz e fronte para afugentar o suor e o mau cheiro do confessante, enxaguando-as e secando-as depois com pais-nossos e salve-rainhas, e de certa forma o mesmo ela fazia, pois esvaziava não as almas mas os corpos dos maus instintos que um macho entesado e sem mula sempre aloja nos por-dentros, aos pinotes a torto e a direito por dá cá aquela palha insignificante. A bem dizer, nem sabia como começara semelhante cargo. Cada um é pró que nasce, diziam os antigos, uns pra doutores, outros pra cavadores, fulano com jeito para capar um burro que nem cirurgião a escarafunchar no abdómen dum desgraçado, sicrano nasceu com a música nos ouvidos, aprendeu a tocar acordeão da mesma forma que a beber uma pinga e a encilhar uma burra, mas não se pode também negar que outros há que se enganaram de galho ou de poiso, com jeito para mandar e ser mandado, para pintar quadros e nem uma parede arranjarem para borrarem à vontade, mas ela, Grila, nasceu para aquilo, assim o descobriu ainda bem nova, embora não consiga apontar a dedo nem o ano nem o dia. Não sei, responderia sem mentir ao vigário, se este lhe perguntasse quando, como e porquê no meio da conversa benta que só um padre pode e sabe fazer, minha filha, vives em pecado, arrepende-te, olha que Deus tudo vê, e lá no outro mundo terás o teu castigo, mais tormentoso que quantas desgraças vemos com os olhos que Ele nos deu. Por via disso, de recriminações e incompreensões, deixou ela de frequentar o confessionário, sem provar a hóstia vai para duas dezenas de anos, embora à missa não falte, como boa cristã, que é dessa forma que a si mesma se vê.
Não tinha ainda vinte anos, isso sabe, quando o Pires Chalaça, alma de Belzebu, lhe tratou da vida, se serviu dela, de cabeça perdida pelo valdevinos como estava, pelo marau, pelo olho de gavião, tronco de franganito, é verdade, mas de tal postura, seguro de si como se fosse rei de Castela, que o fazia crescer aos olhos das moçoilas, pescoço esticado, chapéu a descair para a esquerda, coluna mais direita que pau de virar tripas, e o cigarrinho cínico no canto da boca. Tocou-lhe a ela o fardo, como podia tocar a qualquer outra, a sina nasce connosco e dela não há que desviar. Enquanto não o deixou montá-la foi tudo um mar de rosas, a navegar nas nuvens, danças nos arraiais, esperas na fonte da praça, conversas mais demoradas que almoçaradas de meia dúzia de bispos, ela a carregar o cântaro à cabeça e ele ao lado, borrego manso, ora em fato domingueiro, ora em farpela da lavoura, a subirem a calçada até à esquina da rua da casa da sua avó, que a criara desde miúda, Deus a tenha, alma caridosa como ela só se encontra no meio dos índios da selva. Com a avó ficara a morar depois de o queijo de cabra ter envenenado seus pais, com febre de malta, e não houvera rezas nem inspecções médicas que os salvassem; a moléstia tocara primeiro a seu pai, que, segundo conta a avó, se pelava pelo queijo fresco e mole, e antes que se desse por ela estava de cama, a tremer de maleitas e a suar, febre nos quarenta, não chegava um cântaro de água embebido em linho e despejado na testa para lhe dar uma brisa; logo depois, a mulher, enfermeira dele, caía também à cama com as mesmas quenturas, e foi a mãe da mulher que passou a tratar deles, em vão, porém, pois finaram-se um atrás do outro, por espaço de dias, como o destino mandava, largando nas mãos da velha a encomenda, a pequenita de seis anos, Maria, mais tarde a Grila, porque todos os homens lhe podiam meter a palhinha como aos grilos.
O diabo da velha não gostava daquela ronda do Chalaça pela rapariga, e tivesse-lhe ela dado ouvidos, à velha desconfiada no seu passado de gata escaldada de que os homens só querem uma coisa e agacham-se apenas até a conseguirem, e logo homens daquele calibre, daquela crista levantada, magricelas mas tesos. Lá boa fama não tinha não, que bem podia nisso ter pensado, mas com a sua idade quem se amedronta com más famas, que, pelo contrário, até fazem as raparigas olhar os seus detentores como aos santos nos altares, eles lá no alto e as cachopas, pequeninas, à espera da galação, que lhes ponham a pata em cima. A boa da velhota bem a advertia, rapariga, tem cuidado com o galaroz, olha que aquilo é ave de arribação, a cirandar de fonte em fonte como as libelinhas, pousa aqui, pousa acolá, mas sem poiso certo, vai apenas tirar-te o pólen e depois voa para outra, toma tento, vê a fama que, ao contrário da sombra, lhe foge à frente ainda ele vem lá em cascos de rolha e já se sabe a manganice que pregou. Mas não passava disso a avó, de palavras, ralhos e ralações para a rapariga, que com forças de a desancar não se encontrava, tivesse ela um pai rijo e fero como as demais e outro galo cantaria, umas bordoadas pelas costas se se atrevesse a aceitar a galação de pinto mais atrevidote, quanto mais do Chalaça; assim, a Maria Grila, nos seus anos de flor a desabrochar, não teve varapau a indicar-lhe a linha a seguir e o castigo certo na suposição de não fazer caso de ordens. A rapariga, mesmo assim, não era respondona, ouvia calada os juízos de raposa velha proferidos pela avó, mas, lá no fundo, turrava com o que ouvia e gania baixinho para si, comigo é diferente, eu não sou como as outras, ele olha-me como a Nossa Senhora, mais devoto que romeiro a Fátima, não me vai aprontar nenhuma falsidade, pois não são os seus olhos mais doces e desanuviados que água corrente do ribeiro? Esqueceu que essa é precisamente a arte dos gaviões para abarbatar as patas. E caiu.
Fazia na festa de S. Sebastião, em Agosto, um ano que o agarramento começara, e o Chalaça estava ainda em branco, ou, pelo menos, em cinzento, pois algum aperitivo já provara. Ele foi primeiro a mão da donzela que a sua calejada manápula pegou, no espaço de tempo que levava uma azeitona a cair da oliveira, a medo, como quem não quer a coisa, mas com o fito de reconhecer caminho, depois demorados passabéns a prender-Ihe os dedos e mais à frente a cocegá-los, assim como à palma, mesmo sobre as linhas da vida em forma de eme, tudo isto às claras, com a luz do sol ainda bem acesa, nada de escuros a permitirem mais afoitezas. Mas o demónio do Chalaça era mais batido na arte que doutor a ludibriar as leis, p’ra salteador de inocências nascera também, ainda com ar de borracho no ninho, os primeiros pêlos do demo a mostrar-se nas partes e no buço, a voz a engrossar como a de um trombone, e ele a começar o massacre das peras doces. E muitas estão no papo, umas de todos sabidas, outras que nem ao Camafeu lembraria. Com a Maria Grila foi a que deu mais badalação, tendo começado com a Primavera o incitamento para o abismo. Que assim, com a candeia acesa no firmamento, não podiam conversar à vontade, que toda a gente os lobrigava, que não podiam nem encostar um pêlo ao outro que logo nascia o zunzum, que ela, se fosse tão agradada dele, bem podia retardar a hora de ir à fonte, no lusco-fusco todos os gatos são pardos, e assim estaríamos no nosso paraíso, sem bengalas por perto.
Maria Grila ainda se defendeu, que parecia mal, que iria dizer a avó, etc. e tal, mas a brecha a abrir-se mais e mais, sem querer, a hora de galgar os degraus da entrada a aumentar, das seis para as sete, das sete para as oito, das oito para as nove, casas, ruas e pessoas mergulhadas no capote da noite, olhando-se ao cruzarem a calçada e sem se reconhecerem, só pela voz das boas-noites trocadas, como sói fazer-se nas aldeias, mesmo àqueles com quem as candeias estão às avessas. E então a perna do magarefe foi-se chegando ao equador, a mão subiu-lhe pelo braço, passando-lhe pelo ombro, desceu pelo colo e subiu as colinas até aos bicos, a esgadanharem-se para saírem da blusa.
E viciados nestes entreténs chegaram à altura da festa. Os preparativos começavam meses antes, com arrematações, mais próximo o erguer do coreto em madeira, no centro da praça, à sombra das tílias, o pregar das estacas nas frinchas entre as pedras da rua para construir a paliçada da taberna provisória gerida pelos mordomos, o erguer de tendas para vender doces e chouriços, garrafas de vinho fino e presuntos, blusas e panos de chita, o recorte das fitas, depois coladas em cordas penduradas de beiral a beiral, que virão a enfeitar as ruas por onde marchará a procissão, com o santo da casa à frente, em trajes menores, que isto de vergonhas púdicas não era com os abençoados de santidade, algemado a um tronco sem folhas, a barriga, pernas e peito cravejados de setas e escorrendo sangue de tinta rubra, a modos das torturas infligidas pelos índios aos cobóis usurpadores das suas terras. Os ganapos viviam aqueles preparativos com frenesim e ansiedade, inspeccionando as marteladas do carpinteiro nas ripas do sobrado do coreto, fingindo de comandos a rastejar por entre o arame farpado sob o mesmo, e aprovando as cores garridas das fitas, enquanto os adultos, de longe, apenas observavam o vaivém inabitual da terra ou davam uma mão nos trabalhos.

« Última modificação: Junho 21, 2010, 14:03:41 por Vitor da rocha » Registado
CosmoSe
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Tento desenhar circulos perfeitos


« Responder #1 em: Junho 20, 2010, 01:30:20 »

Estou curioso para ver onde isto vai! venham eles!
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O caminho começa com um primeiro passo.
Vitor da rocha
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« Responder #2 em: Junho 20, 2010, 01:35:21 »

Caro CosmoSe
Por hoje  chega! Aguardam-se comentários.Obrigado
Vitor
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Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

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Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
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Boa tarde a todos.
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Boia noite para todos.
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Boa noite feliz para todos.
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Boa tarde a todos.
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Olá para todos!
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