Nação Valente
Contribuinte Activo
Offline
Mensagens: 1270 Convidados: 0
outono
|
|
« em: Dezembro 27, 2016, 19:41:46 » |
|
Hoje faço oito anos. Amanhã vou fazer a primeira comunhão. O senhor padre Pinto perdoou-me todos os pecados, e por isso, depois da confissão, senti-me livre como um passarinho. Pelo menos livrei-me de um pecado que me assusta há mais de dois anos. Eu tinha seis anos quando cometi o primeiro pecado que considero muito mau. Confessei ao senhor padre que na altura não sabia sequer que era pecado. Só quando comecei a andar na catequese é que aprendi o que o Pai do Céu quer que façamos para não sermos castigados. O que sabia era que devia portar-me bem e não dizer palavras feias como merda e outras senão o Pai do Céu picava-me a lÃngua. Eu tinha medo de ter a lÃngua picada e não poder comer. Também gostava de aprender coisa novas. O meu avô um homem simples e muito curioso dizia-me muitas vezes -Zé, a melhor maneira de aprender é fazendo as coisas. Ele até usava uma palavra para mim um bocado difÃcil, que era experiência. O certo é que foi um pouco a partir dessa ideia do avô, que eu um dia fiz a acção que me envergonhava. Costumava brincar com umas primas que moram na rua a seguir à minha. Desde que entrei para a escola que não brincamos. Agora é moças de um lado e rapazes do outro. E se brincar com elas chamam-me maricas e à s meninas “machonasâ€. Só nos juntamos nos bailes dos mais velhos e lá andamos agarrados arrastando os pés ao som da concertina do Venâncio. Aà até o senhor professor nos ajuda, pois estamos a aprender a bailar. Quando tinha seis anos brincava com as primas, Três-Marias, a da Consolação, a da Encarnação e da Purificação. Havia ainda as mais pequenitas que se chamavam Judite e Hortense. A Maria da Consolação é da minha idade. As outras como uma escaleira a descer eram mais novas. Por isso foi a Maria da Consolação que escolhi para fazer a tal experiência que os nossos pais faziam para ter os filhos. Eu não sabia se a Maria acreditava na história da cegonha. Mas se fosse esperta já tinha percebido que as cegonhas só estavam no verão e os meninos chegavam todo o ano. No fim do Verão fui com as primas visitar a escola para onde eu e a Maria Ãamos em Outubro. É uma grande casa com grandes janelas de vidro. Muito diferente das casas onde nós moramos. Fica fora da aldeia, num serro. A casa que está mais perto é a do meu avô, que a fez ali porque não gosta de misturas. Quando Ãamos para a escola até vi a avó, sentada ao soalheiro a remendar umas calças do avô. Na parte de trás da escola tem um pátio com telhado, e ao fundo retretes sempre fechadas. Ao lado das retretes há um espaço com uma bacia branca e uma torneira que nunca deita água. Foi aà que disse à Maria da Consolação: -Vamos fazer um menino? A Maria não disse nada e pôs-se a jeito. Também não acreditava na cegonha. Deitou-se de barriga para cima no chão duro de mosaicos e levantou o vestido. Às outras primas disse para taparem os olhos que aquilo não era coisa para ver. Estávamos quase a começar a experiência quando ouvimos passos. Logo nos compusemos, mesmo antes de aparecer uma pessoa magra, de cara com rugas: a avó. -Não há mal. Estamos a brincar à s escondidas, disse-lhe. Nesse ano entrámos para a escola e ao mesmo tempo para a catequese. Não voltámos à s brincadeiras. Eu com os moços jogava à bola. As moças aprendiam as lidas da casa. Na escola estamos divididos por fios de arame. Na igreja temos catequese separada. A minha catequista a menina Glorinha já tem noivo e está preparada para ter meninos. Tem umas grandes mamas para lhe dar de comer. Foi na catequese que aprendi que podemos pecar por pensamentos, palavras e obras. Mas a menina Glorinha assustou-me mais,pois disse que se pecássemos Ãamos para o inferno, um sÃtio onde éramos cozidos. No dia em que fui confessar-me ia muito assustado. Confessei tudo ao senhor padre. Ele quis saber se tinha pecado por pensamento ou por obra. Como foi só por pensamento perdoou-me, mas tive de rezar pais-nossos, aves-marias e salve rainhas. Levei quase um mês a cumprir a penitência. Começava a reza ao deitar e pouco depois já estava a dormir. No outro dia tinha de recomeçar. Hoje sinto-me aliviado. Não vou cometer mais esse pecado. Nem esse nem outros. Não tiro os ovos dos ninhos, como O Manel Passarinho, não chamo nomes feios aos outros, não vou para as várzeas da ribeira comer fruta alheia, nem desrespeito pai e mãe. Bem, desrespeitei uma vez quando fui andar numa barca de canas na ribeira cheia com o Chico Maltês, um matulão com o dobro da minha idade. Isso foi faz quatro anos, e o meu pai deu-me tantas cinturadas que ainda hoje me doem as nádegas. Nunca confessei esse pecado. Já tinha passado tanto tempo que penso que o Pai do Céu que tem tanto pecado para perdoar, se deve ter esquecido desse. Nessa coisa de fazer menino vou esperar. Quando for grande logo penso nisso. Agora vou é aprender a gramática, a história, a geografia e as ciências. Gosto muito de escrever redacções. E o senhor professor também gosta de as ler. Mas esta não lha vou entregar. Fica para um dia me lembrar do tempo em que cometi o primeiro pecado. E só eu, a Maria, o senhor padre e o Pai do Céu é que sabemos.
|