gdec2001
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« em: Abril 13, 2021, 19:57:38 » |
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Ai de vós! Esta visita não me deixou ainda satisfeito. É certo que, tal como prometera, foi uma visita pura e simples, despida dos ornamentos que sobrecarregaram as outras e lhes emprestaram por assim dizer -e não me ocorre palavra mais absurda- um significado. Mas acreditando que devia mais, à complacência com que tendes escutado o meu discurso, imaginei servir-vos a descrição da visita das visitas. aquela que fosse como que o resumo de todas as que fiz, das que descrevi e principalmente das que não pude fazer e também daquelas que a decência não me permite relatar. O acaso -chamemos-lhe assim à falta de melhor- serviu-me, creio que da melhor maneira, as intenções. A 4ª visita_ Revestido pelo uniforme oficial e ostentando todas as condecorações e faixas e ainda a máscara adequada à dignidade do meu cargo, achei-me numa rua larga, longa e fresca como não há muitas para percorrer. No entanto, não avançava melhor que um nadador através de um mar de pegajosos sargaços. E tudo porque tinha de fazer os costumados trejeitos à esquerda e à direita, para corresponder aos respeitosos cumprimentos dos que, desta maneira, se propunham, disfarçadamente, dificultar o meu avanço. O que me valeu foi que à medida que aumentava o número dos transeuntes , rareava o dos que me reconheciam.. Quando deixei de ter de saudá-los, pude, enfim, distrair-me. Primeiramente distrai-me dos membros inferiores e o meu caminhar tornou-se logo mais fácil. A multidão ia também tomando posse do resto do meu corpo à medida que engrossava à minha volta e em breve, nem mesmo me era possÃvel apurar se a cabeça me pertenceria. De facto os nossos pensamentos vibravam em unÃssono e foi assim que, antes de o ver, já vira o lugar para onde nos dirigÃamos. Era um enorme recinto que a costumada e anfiteátrica bancada circundava. A multidão, reparei, apontava para mim e ria mas era um riso alegre , empurrando-me para a arena. Quando ali cheguei experimentei as minha habilidades -que outra coisa poderia fazer?- executando na perfeição três mortais a seguir, que terminaram -e aà é que estava a novidade- na posição horizontal. Dificilmente pude suportar a ofensiva dos aplausos de uma qualidade que eu -tão habituado a eles- desconhecia. Em vez da costumada ondulação sonora, o que chegou até mim foi uma vaga de verdadeira luz; vede se não me espantaria! Nela banhado, continuei com o segundo número que consistia simplesmente em passar da posição horizontal à vertical -e sabeis como tinha disso experiência- mas de modo tal que parecesse puxado por um fio que me ligasse a cabeça a algum espectador que ocupasse exatamente a bancada superior do lado para onde olhavam os meus pés; ou seja , explicando melhor e com menos palavras: como os teimosos de feira. O êxito desta simples operação não é para ser contado com palavras. Apareceu então um patusco vestido como um palhaço que me ofereceu um violino. Agradeci-lhe com o costumado pontapé e pus-me a tocar com todo o sentimento de que sou capaz -creio já ter mostrado que sou capaz de muito sentimento- e a cantar. Cantava: Se eu me deixasse mostrar aos saltos no meio da rua em vez de impor-me amarrado no fundo não sei de quê mas tão no fundo do fundo que ninguém me ouve e vê quem me olhasse e quem me visse -o quem que amarra o que via- talvez se risse.
Mas se o que eu tenho amarrado no fundo não sei de quê deixasse que eu me mostrasse em vez de ter-me amarrado no fundo fundo do fundo não sei de quê mas tão fundo e tão profundo que ninguém me ouve e vê quem me visse e quem me olhasse -o quem que amarra o que amarra o que veria- talvez chorasse etc., etc.,etc. Mas não consegui levar até ao fim, de uma só vez, a cantiguinha porque apesar da suavidade da música e da não menor suavidade com que manejava o instrumento não tardou que a corda mais grossa rebentasse com um estrondo que assustando-me, me fez repetir num abrir e fechar de olhos os dois números anteriores. O entusiasmo que tal cena despertou na assistência deve ter começado a preocupar seriamente as autoridades daquela terra, se é que tinham alguma noção dos seus deveres; eu cá continuei a tocar sem qualquer perturbação pois as três cordas restantes eram mais do que suficientes. Foi talvez por isso que a segunda corda não tardou a seguir o exemplo da primeira, do que não deixei de apresentar desculpas ao público com gestos adequados; e o público retribuiu a minha delicadeza com aquelas rebrilhantes gargalhadas que caiam feitas luz na arena em que eu, livre, evoluÃa. Procurei então acabar a minha área servindo-me das outras cordas e não me estava a sair mal -viam-se lágrimas em muitos olhos- quando a penúltima corda faleceu. Desatei a chorar como um menino e todos choraram e riram comigo durante algum tempo. Restava-me precisamente a corda mais miudinha. Acreditar-me-eis se vos disser que era agora que a música saÃa mais pura ? Mais…mais…isso. Esperava de um momento para o outro ficar também sem aquela frágil companheira mas o certo é que cheguei sem novo acidente ao fim da sinfonia. O público não levou isso a bem e para o satisfazer ataquei uma marcha bem militar. Aguentei-me nela durante um andamento completo sob os assobios da assistência que, como é sabido, gosta de assobiar as marchas ; comecei a enraivecer-me e achando ali uma vassoura deitei fora o arco e continuei a marcha com ela; embora não se notasse diferença na música, o público aplaudia agora gostosamente mas a minha raiva não parava de crescer; arrumei a vassoura e passei a tocar brandindo o violino de encontro à s cordas do trapézio, à s cadeiras desocupadas da primeira fila e à s grades da jaula dos leões. Acabada a marcha exibi desesperadamente o que restava do instrumento -uma tábua miúda sobre a qual, bem esticada, se distinguia a intrépida cordazinha. Infelizmente mal me cheguei a aquecer à luz dos derradeiros aplausos porque logo caiu sobre mim, como um espesso nevoeiro, o mais terrÃvel dos silêncios. Deixei então de distinguir as coisas à minha volta e pude enfim olhar-me; reparei que com os movimentos desordenados que fizera, me esfarrapara todo, perdera as minhas faixas e condecorações, deixara cair a máscara. Todos puderam, desta arte, ver o logro em que haviam caÃdo e não tardou que com quatro pontapés no lugar adequado, me encontrasse novamente na rua. Empreendi então o difÃcil caminho do regresso e chegado à minha cidade com facilidade me refiz dos efeitos desta forçada, curta e desastrosa mas total. digamos assim, visita. Não vos enganeis porém com o seu significado, nem vos esqueçais que foi inteiramente a obra do embuste. Geraldes de Carvalho de “O CAMINHO†Lourenço Marques 1974
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