pedrojorge
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« em: Março 21, 2008, 12:22:59 » |
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A minha mãe situava-se a dez metros. Eu projectado na sua frente. Outro senhor a um raio de cinco metros, isto a recorrer à s minhas capacidades actuais de avaliar o local conhecendo-o hoje como o conheço, embora naquela idade me estivesse borrifando com odor marinho para esses detalhes. E na minha memória vã, guardo a sensação de que me arremetia a um cliente no qual o meu pai estaria a atender, adversamente ao embaraço pregado pelo choque de me alisar na frente de um Africano a espernear à s portas da morte, levara uma martelada por algum furto cometido ou desacato ou dÃvida por soldar, outro género de furto, ou cotas da droga, a verdade era que ninguém se importava e eu analisava os espirros de sangue, os jactos que abatiam na parede e deslizavam verticalmente até serem absorvidos pela roupa. E ali, em pleno negrume diurno, na banalidade de um Domingo, disso tenho a certeza, escorria o sangue de um senhor não identificado por mim, tal e qual como escorria a minha mãe o sangue à s galinhas, só que pelo pescoço que cortara e não por uma frincha da nuca. Não era ali que eu confirmava que o sangue não era azul como aparentavam as veias que me diziam lá circular o tal lÃquido tão precioso, já tinha visto muitas vezes antes. Até de mim. O senhor não era a simples morte que representava, mas uma dor similar que bem me recordava dos tempos em que o meu padrinho não era casado e de tomar conta de mim, anos antes. Esse senhor ajudava-me na escola. Tinha a ideia de ser instruÃdo. E numa insólita tarde de brincadeira no pátio do meu avô, abraçado de galinhas e galos, boi num curral, chão de esterco no qual as ervas não nascem pelas picadas imediatas das galinhas à medida da sua nascença. Eu a brincar em cima de uma tábua de sapatilhas que o meu avô me costumava ir comprar à s quintas, nos dias em que os meus pais não estavam, lá ia com ele de scooter até à Carreira, uma terra com uma sapataria e eu pedia as que davam luz se pisasse o chão com força. A tábua parecia segura, contudo espetei-me com um prego bem fundo no pé e ainda hoje guardo essa marca. O meu padrinho abriu a porta da casa do meu avô e eu a gritar, pela dor, a dizer que ia morrer, de seguida levou-me ao lavatório e ao hospital, tive o meu primeiro contacto com o Betadine, algo que não se usava na minha casa. E ressequido da dor não ia morrer, não, ao contrário daquele senhor com o qual me sentia solidário. O seu nome era meu desconhecido. As razões da morte também. Fosse pelo que achavam que devia pagar, um martelo na cabeça, especado em plena rua a uma parede, jorrando sangue como se chovesse, não era por azar. Havia até quem defendesse a justiça da sua condição. Mas eu conhecera uma parte da dor e não consegui imaginar aquela. Nem sei se queria. Era uma criança, espantada, a ver, era um observador inato. Não me lembro hoje da face do senhor. A história ficou. O local era longe da minha morada. Graças a Deus. Só desesperei a morte ser tão vazia de conteúdo. Desacompanhada de cartas a explicarem. O desfiguramento de uma abertura no crânio era um desfasamento crucial da vida para a morte. E a situação não se igualava a ver uma galinha a remexer pela pena que sentimos dela, dizia a minha mãe – não se tem pena dos animais, mais demoram a morrer – e era o que parecia, as galinhas ou patos ou galos a atordoarem de dor, a sacudirem as asas como se a morte pusesse galinhas a voar, ou galos, ou patos com as asas cortadas. Os coelhos eram mais suaves a morrer. Duas pancadas bem dadas e já nada, pensam muitos. Pior eram as histórias de já esfolados, na bacia para abrir e tirar as tripas, e lembrarem-se de saltar fora e correr uns metros. Conheço pessoas que se afirmam traumatizadas por isso. Será que o senhor da martelada na ambulância tentou escapar? Será que o desforraram e lhe deram uma morte como as galinhas e os galos? Será que ganhou asas e voou até já não poder? Questões das quais nunca me lembrei. Nunca me tentei perguntar de como seria o seu funeral. Se seria igual ao de muitos que não lhe podem abrir o caixão por razões de trituração ou apodrecimento rápido. Se alguém lhe rezaria uma Avé-Maria e o acharia homem. Se haveria um discurso na Igreja e senhoras a chorar. Se estaria a chover ou se ainda estaria a entornar sangue no momento da marcha fúnebre e alguém se lembraria da analogia com o sangue do Senhor, ou então algum ateu conseguiria encontrar a oração divina para acabar com toda a hipocrisia religiosa e clerical e dar ao mundo a liberdade do agnosticismo, que deverÃamos seguir. Mas a morte tem cauda… e como disse tem asas, será um dragão que queima as almas? E naquele lugar, Cova da Moura, a umas ruelas da rua do Moinho, ficou um reflexo meu, a minha sombra, parada no tempo, esquecida. Silêncio… paz à alma do senhor, que a sua alma esteja em sossego. Ãmen.
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