Maria Gabriela de Sá
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« em: Outubro 12, 2013, 20:42:45 » |
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O telemóvel tocou e era raro esse número aparecer no visor. O Alexandre, um dos sobrinhos mais novos, devia estar a viver uma emergência. Não podia dizer que só lhe ligava em casos mais ou menos de vida ou morte, mas quase. Dessa vez era uma multa, já relaxada, com carimbo do tribunal e tudo, demasiado inflacionada para um bolso “ordenado mÃnimo†. ─ Ó tia, já é muito velha, do carro antigo, tem mais de um ano. Tu não podes fazer nada? Foi para casa do Hugo, o carro está em nome dele, por causa do seguro. A mim só mo faziam por um dinheirão. Paga-se sempre muito por se ser jovem. Até para trabalhar. Recebemos uma côdea, não temos empregos estáveis e com os meus pais não posso contar, a não ser na comida e roupa lavada, numa casa de onde não posso sair tão cedo para construir a minha própria famÃlia. Era assim. Às vezes, ela, sem filhos, era vista pelos putos mais ou menos como Um Deus das Pequenas Coisas. A Catarina um dia,também lhe ligou chorosa. Queria desabafar e não tinha com quem. A mãe estava a tentar impingir-lhe o namorado, um caso com os dias contados no coração da rapariga. Então, como tia boa ouvinte, deu-lhe o único conselho possÃvel. ─ Segue os teus sentimentos. Os pais não têm de projectar-se nos filhos, pô-los a fazer o que talvez eles próprios não fariam se estivessem no seu lugar. Doutra vez foi o Pedro. Depois de alguns desaires económicos, sonhos irreais e pés pouco assentes na terra, em situação limite. de quem se lembrou foi dela. Era para ficar de fiadora no banco, se ainda houvesse um banco a emprestar-lhe dinheiro quando o nome dele na praça já estava demasiado sobrecarregado com dÃvidas. Ou talvez fosse melhor ser a tia a contrair o empréstimo… Perguntas do género não eram directas, mas estavam implÃcitas nas palavras nervosas dele, nas baforadas de fumo do cigarro que se sentiam do lado de cá do fio, onde parecia estar a solução. E estava, na maioria dos casos, nela… Às vezes, ela perguntava-se por que não tivera filhos. A resposta era também ela quem a dava. Os filhos deviam ser os sobrinhos. Era para quando os pais entrassem em falência, inclusive de compreensão, e se tornassem egoÃstas justificando o que não faziam, e talvez devessem, com o facto de terem mais. Às vezes parecia-lhe que os pais deles, se os vissem a morrer todos, os três irmãos, não eram capazes de estender a mão para salvar o que pudessem, só para não viverem o resto da vida com um dilema assim. Portanto devia ser coisa do destino, karma ou qualquer coisa do género. E era por isso que ela à s vezes se sentia uma tapa buracos, um Deus menor, como era agora o caso da multa do Alexandre. O pedido do rapaz nem ele próprio sabia qual era. A tia costumava inventar umas tretas com êxito junto de certas entidades, como aquela de o ter safado há uns anos, ainda ele era menor, juntamente com 3 amigos, de uma multa em quadruplicado, por nenhum deles ter tÃtulo de transporte válido para viajar no metro, onde os fiscais quase conseguiram fazer-lhes a folha. Mas não chegaram a pagá-la. A tia, evitando a queda do Carmo e da Trindade em quatro lares, devia ter posto um serviço inteiro a rir à gargalhada, quando pôs na mão de cada um a autoria daquela carta maluca, que os ilibou a todos da infracção e em que todos se intitulavam Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, embora tivesse sido a professora de inglês deles a designá-los assim por os ver sempre tão juntos. Mas, agora, o que poderia ela fazer por uma multa? Um pedido ao meritÃssimo juiz para lhe perdoar as custas, como Alexandre queria? Desta vez a pobre da tia, na urgência do telefonema e sabendo da inutilidade de eventual arrazoado que pudesse engendrar, talvez não lhes restasse outra alternativa senão abrir os cordões à bolsa e resolver a urgência de um puto “ordenado mÃnimoâ€, pagando a bendita multa. Talvez fosse mais uma entre outras condições para ela continuar a ser a Tia Júlia, mais um Deus entre os deuses das pequenas coisas.
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