André Marçal
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« em: Agosto 12, 2008, 19:49:21 » |
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O Sol de Agosto raiava e os raios quentes como lava banhavam a planÃcie de Aljubarrota. A poeira era varrida pelo pouco vento que a levantava e a pousava dois ou três metros à frente, esperando depois por ser levantada de novo. Tanto quanto pude alcançar com a minha vista éramos poucos em relação à gigante massa que se estendia duzentos metros à nossa frente. A minha armadura era pesada como se a força de um gigante a puxasse para baixo. O meu elmo, igualmente pesado, cortava-me a visão que estava habituado a ter à minha volta, sendo assim, não me sentia tão seguro. As massas de carne humana, fortemente armadas e aparentemente corajosas, permaneciam imóveis ao silêncio aterrador e cortante que era momentaneamente interrompido por um grito para encorajar os restantes de nós. Mesmo parado, eu já estava coberto de um suor quente e repugnante ao qual consegui sentir o sabor salgado quando este escorria da minha testa até aos meus lábios. De tão quente que estava, sentia um desconforto crescente que aliado ao arrepiante medo, me fazia tremer ligeiramente. Ao meu lado sentia o medo de Afonso, a seguir, tocava-me o medo de Joel e atrás de mim, sentia ainda, o de Manuel. Não escorreram mais de dez minutos sob o Sol infernal que me torrava por completo. Montado num cavalo tão ou mais assustado que eu, que, no entanto, não perdera a sua imponência verifiquei pela milésima vez, o que trazia comigo. Era peso a mais, mas no mais ágil dos meus sonhos tornava-se leve como algodão. As trombetas emitiram um som medonho que surgiu tão repentinamente como cessou. O medo consumiu-me o pensamento, mas rapidamente me apressei a cortá-lo para não entrar num pânico completamente desnecessário que apenas me traria o cheiro e o sabor de uma morte áspera. A primeira fileira dos diabos castelhanos avançou correndo velozmente pela planÃcie. Pareceu-me ver um dos pobre guerreiros tropeçar e logo depois ser espezinhado pela dezena de homens que viria imediatamente atrás. A nossa primeira fileira avançou de acordo com a táctica combinada. A unidade de cavalaria onde me encontro irá auxiliar era primeira vaga no fim da esperada vitória sobre a fileira dos castelhanos. O embate foi aterrador e um arrepio explodiu percorrendo a minha espinha e deixando o terror do que me esperava em cada centÃmetro de pele por que passou. O meu cavalo não lhe ficou indiferente, partilhei o mesmo medo com ele, contudo, eu tinha-o em conta como bravo. Recompus-me e baixei a viseira do meu elmo que antes havia levantado para tentar capturar o mais Ãnfimo pedaço da brisa que insistia em não correr. Alguns pereceram logo no embate mas logo outro soldado aparecia da massa para o substituir. Vi um jovem rapaz que me impressionou, o seu estilo era fenomenal e via-se-lhe uma agilidade fantástica no domÃnio da espada. Girou para a direita e um castelhano beijou-lhe a ponta dos pés, logo depois, rodopiou para a esquerda e degolou outro que jorrou um pequeno mar de sangue vermelho rubi pintando uma pequena mancha na parte de trás da sua armadura. Assim que se voltou, encontrou uma espada à espera desse mesmo movimento; essa espada rasgou-lhe a carne mesmo na direcção no seu umbigo. Morreu. Desviei o olhar e fixei-o no nosso comandante que estava prestes a dar a ordem já esperada pela maioria dos meus companheiros. Era a nossa vez. Rodei os meus ombros para trás respondendo à dormência causada pelo peso da armadura reluzente que trazia. Vi o comandante hirto e certo de si, não encontrei o medo que procurava incansavelmente nos seus olhos. Um segundo depois, levantou o braço e rugiu: - Por Portugal! Num movimento não voluntário e do qual não tomei consciência, iniciei a minha cavalgada. Ia bastante assustado mas para me encher de confiança e coragem gritei: - A eles! Os pedaços de terra levantados pelo violento bater dos cascos do meu cavalo voavam para trás e a velocidade parecia-me ser cada vez maior. Só me escapei ao susto pois já cavalgava desde criança. À medida que avançava sentia uma confiança inigualável a dominar-me e o cavalo transmitia-me grande parte dela pois estava num plano mais alto do qual maioria dos guerreiros não desfrutava. Já próximo do centro da batalha notava alguns amontoados de corpos repletos de sangue. Era um ambiente tétrico e altamente assustador porque aquela era a suposta glória de um guerreiro que morre pela sua pátria. Respirei bem fundo e gravei em mim a certeza que não iria morrer ali. Quando já estava próximo do furacão de sangue que se confundia com um centro de batalha, vi dois castelhanos a correr enfurecidamente para mim. Um deles tropeçou e ouvi o som do seu crânio a bater violentamente no solo. Como ia embalado o seu corpo percorreu três longos metros e acabou por parar devido à inércia, morrera. Desviei o meu olhar daquele terrÃvel espectáculo e foquei a minha visão já cansada na outra pobre alma que provavelmente pensava que me venceria. Sem prévio aviso uma seta passou por mim e cravou-se no coração do soldado. Deus parecia insistir em manter a minha espada nua de sangue. Depois de finalmente ter chegado senti o cheiro a morte. Enjoado, vi-me forçado a desembainhar a minha espada que reluziu e reflectiu a luz do permanente e tórrido sol de Agosto. O primeiro que se atravessou a frente do meu cavalo pereceu a meus pés. E o segundo não teve melhor sorte caÃdo bruscamente com quase menos um braço no chão. Subitamente, senti um calor profundo derivado de desequilÃbrio vindo do nada, ou melhor, de trás de mim, pois uma lança estava espetada na sua garupa o que causou uma mancha gigantesca de sangue no pelo branco do meu bravo cavalo. Enquanto caÃa preparei-me para o violento embate no chão que vim mais tarde a descobrir que seria ainda mais violento do que eu esperava. Contorci-me de dores no chão e lutei para não desmaiar. O meu cavalo relinchava, triste e assustado. Por duas vezes senti-me arduamente espezinhado nas pernas mas consegui com bastante luta levantar-me quando as dores começavam a desaparecer, mas não por completo, o que me levou a fraquejar. Ainda apoiado na espada e ofegante de suster o peso da grotesca armadura procurei recompor-me. Assim o fiz embora com a devida dificuldade. O cenário que observei não me foi de todo desagradável pois estávamos em clara vantagem sobre os teimosos castelhanos. Empunhei a espada que se revelou mais pesada que outrora e procurei por algum adversário. A procura não foi nada complicada pois quando me virei, tinha um homem de estatura verdadeiramente gigante a correr violentamente na minha direcção. Senti pura adrenalina a ser injectada no meu sangue e ameacei atacar pelo seu lado direito mas consegui a proeza de rodopiar agilmente para a esquerda com a espada por cima da minha cabeça, depois, num golpe que se revelou fatal cortei sem qualquer piedade a sua perna esquerda. Fiquei impressionado como ainda teve forças para me atirar com o seu escudo do qual me desviei com facilidade. A próxima vaga dos castelhanos não tardava mas os nossos homens tinham sido bem distribuÃdos e sabiam exactamente quando e como avançar. Ainda ofegante do exigente rodopio de à segundos atrás, procurei achar o ritmo de uma respiração correcta de modo a que não fosse acelerada demais pois isso apenas me cansaria. A vaga castelhana que já começara a sua corrida para nós foi banhada por uma intensa chuva de setas que a dizimou facilmente. Fui invadido por uma satisfação e glória enormes no meio de um cenário de morte e dor. Não tardou que os castelhanos nos devolvessem o ataque de setas e assim que me apercebi que estavam prestes a ser disparadas, procurei desesperadamente um escudo pelo chão que veio depois a cobrir as minhas costas e cabeça quando me agachei semelhantemente a uma tartaruga protegida pela sua respeitável e forte carapaça. Com cinco setas espetadas no escudo atirei-o para longe pois era apenas peso adicional que não precisava. Juntei-me depois aos restantes cavaleiros e guerreiros tentando andar entre um chão de corpos pálidos e frios. O ataque final castelhano não parecia tardar. Regressamos a correr para trás de modo a integrar a formação combinada para que os castelhanos caÃssem no fatal erro de nos combater no interior do nosso genial quadrado. Mesmo assim, não me poderia desconcentrar, a batalha ainda não terminara e ainda havia muito a lutar. Enquanto descansava e esperava o ataque dos castelhanos a face da frente do quadrado pude vislumbrar por vinte preciosos segundos o Condestável. De um porte e atitude respeitáveis e uma coragem irradiante aos que se encontravam à sua volta, notei na sua armadura prateada que não tinha o mais pequeno risco e à qual ele não mostrava desconforto. Montado num cavalo negro e num plano muito mais alto que os restantes, gesticulava freneticamente dando ordens e jogando com os soldados para que a tão desejada vitória caÃsse nas nossas mãos. Ligeiramente incomodado pela sua grandeza senti-me forçado a desviar o olhar e a ficar o inimigo que se aproximava. Realmente, os castelhanos não pareciam de todo inteligentes, isto porque vinham ao nosso encontro. E durante a bela caminhada choveram milhares de setas sobre a massa claramente superior ao nosso exército. As baixas fizeram a diferença e por isso insistimos em continuar a infligir essa dor ao monstro que estava cada vez mais perto. Eu encontrava-me na face direita do quadrado pronto a flanquear aquando a entrada dos castelhanos na armadilha. Os portugueses que estavam à frente, apressaram-se a combater os detestados que iam chegando e eram facilmente derrotados. Quando se viram obrigados a entrar na já inevitável armadilha caÃam aos molhos. A parte de trás do exército castelhano ainda tentou flanquear o nosso quadrado com besteiros e arqueiros que fizeram chover setas mesmo sobre os próprios companheiros no meio do quadrado. Ambos os povos tiveram baixas desta vez. Quando acordei da minha visão táctica sobre o que se passava chegara a vez de combater e fazer um último e derradeiro esforço pelo meu paÃs. Corri como nunca antes correra procurando derramar sangue espanhol. Ameacei e depois ataquei espetando a minha espada no peito do primeiro adversário e retirando-a coberta de sangue. Corri mais para a frente e rodopiei defendendo um oportuno ataque que me fizeram de lado mas cujo atacante beijo o solo sangrento assim que saboreou a doce lâmina da minha espada. Assim que pude agarrei um escudo pois uma fracção de segundo mais tarde mostrou-se bastante útil quando uma lança voou na minha direcção. Por esta altura ouvi gritos horrendos e entoados da mais profunda dor que um corpo poderia sentir. Rugi e virei-me para a esquerda decapitando sem qualquer pinga de misericórdia outro adversário que se insistia em se atravessar no meu caminho. Ofeguei em busca de oxigénio para o meu sangue à medida que o meu batimento cardÃaco tentava acalmar do esforço. Dos poucos segundos de descanso que obtive pude roubar alguma energia que serviu para cortar o pulso de outro adversário que estava prestes a cravar a sua espada nas costas de um português. Desesperado e já sem a mão direita onde segurava firmemente a espada correu para mim com raiva bem visÃvel no seu olhar. Olhei-o nos olhos antes de dar um golpe fatal que o levou a embarcar num sono eterno. Agora sim parecia uma batalha ganha. O cenário não melhorara pois setas ainda voavam e lanças ainda se cravavam nas costas dos mais bravos guerreiros, mas mesmo assim, Portugal estava em vantagem agora. A metade do exército castelhano que antes nos tinha flanqueado, bateu numa retirada medÃocre e cobarde. Uma felicidade e orgulho inundaram-me enquanto o suor me encharcava desde as costas e sovacos até aos pés que de tão frágeis e cansados já ferviam. Repentinamente, dei por mim à beira da morte a defender-me de um adversário que aparecera de surpresa atrás de mim. Lutava rapidamente e os seus movimentos eram fluidos. Notava-se-lhe uma facilidade imensa no manejo da espada que por pouco não me beijou o pescoço. Por muito rápido que eu tentasse ser, o terrÃvel ser encontrava sempre maneira de me surpreender com movimentos ágeis que me levavam à quebra do meu ritmo defensivo. Um desses movimentos teve a infelicidade de me acertar e pude sentir a lâmina da sua curtÃssima espada a deslizar sobre a minha coxa. A dor corroÃa-me as forças e o suor nas pernas causava um incrÃvel ardor na ferida que cobria os meus calções castanhos de sangue que também insistia em escorrer pelas pernas. Não sei como nem porquê notei uma fraqueza no seu ataque e aproveitei-a da melhor maneira num movimento em direcção ao seu coração. Foi necessária uma força notória para trespassar as suas costelas e perfurar as entranhas do seu corpo. Quando retirei a espada ele caiu, petrificado. Por não aguentar a dor que me comia aos poucos as forças ajoelhei-me procurando um breve minuto de descanso e algo para estancar o sangue que escorria até à minha caneleira. Recompus-me com bastante dificuldade e olhei em meu redor. A guerra estava ganha, daria a minha vida em como isso era certo! Nunca tinha tido tanta dificuldade em levantar-me e fi-lo mesmo muito lentamente. Inspirei e uma onde de orgulho percorreu-me e por um segundo que pareceu durar uma breve eternidade, deixei de sentir qualquer dor. Era o meu povo que tinha ganho! MerecÃamos tanto aquela vitória conquistada com o nosso suor e o nosso sangue! Era finalmente nossa. Voltei-me para trás e vi de novo o Condestável coberto por uma mistura sangue já seco e outro ainda bem brilhante. Ao seu lado avistei o Grão Mestre da Ordem de Avis, imponente e duplamente orgulhoso de si pois defendera o nosso reino com unhas e dente. Confesso que quanto à s lágrimas, resolvi deixa-las correr. Eram poucas mas tinham que ser derramadas pelo intenso orgulho que sentia. Não muito depois apagaram-se os meus sentimentos e a dor que sentia na perna. Não muito antes uma seta perdida cortara o vento atrás de mim e enterrara-se no meu pescoço. Ao revirar os olhos para baixo vi o seu bico que tinha furado facilmente a minha traqueia. Lutei o dobro ou mesmo o triplo do que em toda a batalha para conseguir acreditar que não era verdade. Mas era, eu sabia-o. As teias que me envolveram interiormente decidiram poupar-me à dor de passar a barreira psicológica em que o nosso cérebro implora por oxigénio. A minha visão deixou de existir, primeiro desfocando-se e só depois deixando um vasto vazio. Senti-me a desvanecer, sem dor, quando finalmente, morri.
André Tavares Marçal
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