Maria Gabriela de Sá
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« em: Fevereiro 14, 2020, 21:49:56 » |
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Sem me pedir licença, através das vidraças das minhas janelas viradas a poente, entra-me em casa o sol prazenteiro, de Inverno e de Verão. Depois, dentro, fica um mar de luz, em que os olhos gostam de mergulhar numa calorosa sensação de bem-estar. Não que a casa seja um cem por cento de pontos fortes. Mas o sol é um deles, em contraponto, contudo, com o ruÃdo, que, do mesmo modo, atravessa as vidraças da minha casinha com alguma displicência. Embora chegue até mim diluÃdo pela espessura transparente das mesmas vidraças, duplas e incumbidas de o mitigar. Hoje, porém, dadas as circunstâncias em que o sol tem andado envolvido, no meio de chuva e de nevoeiro, quem trespassou as minhas paredes e vidraças foi o ruÃdo. E que ruÃdo, meu Deus. Um estrépito ensurdecedor atroou os ares, enquanto eu imaginava um ou mais carros, na estrada em frente, enfaixados uns nos outros, e dois ou três feridos, e até mortos, envoltos num mar de sangue. Da cozinha, onde ultimava o meu quotidiano doméstico, fui então à janela da marquise, inteirar-me da situação para efeitos de um eventual testemunho em caso disso. Vejo, porém, tudo mais ou menos calmo, o tráfego a fluir com aparente normalidade e sem nenhum empecilho à frente, carros para um lado e para o outro, outros parados, as empresas em frente a tratarem da vida como de costume. De vez em quando, contudo, os estrépitos faziam-se sentir, agora parecidos com uma rajada de metralhadora, que eu não sabia onde estaria situada e quem seria o atirador, possesso e raivoso, tanto quanto parecia, e com vontade de matar uma cidade inteira, ou, pelo menos, um arrabalde completo. Pensei, entretanto, nos sistemáticos massacres em terras do Tio Sam, e dei comigo a imaginar algo semelhante. Mas não havia escolas por perto, nem shoppings, nem coisa que se pareça, e, por mais que varresse os olhos na tentativa de encontrar o atirador, só me apercebo de uns homens, do outro lado da estrada, junto de um carro de portas abertas, aparentemente alterados com alguém do edifÃcio em frente, que, mais esperto do que eu, já tinha na realidade identificado o pistoleiro de serviço. Na verdade, tratava-se do carro, de escape tão livre como um trovão no meio de uma tempestade. E, tanto quanto a lógica das coisas dava a entender, entre o dono do carro e um dos meus vizinhos, havia realmente ocorrido um quiproquó, que eu não consegui ouvir, mas que levou o dono do carro a virar-se de costas e, ao interlocutor que o terá talvez insultado, mostrar o cu. A seguir, o carro entrou onde tinha de entrar, com a mesma horrÃvel cagança que esteve na origem desta humilde crónica E eis mais uma história do cu-otidiano.
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