Mesmo para Theodor Busbeck - habituado aos labirintos mentais em que doente e médico por vezes entram - aquela pergunta era inaceitável, ou pelo menos, ameaçadora.
Em que deve pensar um homem? Para onde deve o homem dirigir o seu pensamento?
- Gonçalo M. Tavares, Jerusalém
Mais um jovem escritor no
Livros (s)em critério, desta vez Gonçalo M. Tavares que parece ter o diabo da escrita indomável no seu corpo: só assim se explica que um autor com apenas 38 anos tenha já mais de vinte publicações no mercado. Obviamente que nem sempre quantidade é qualidade, mas, neste caso, é, pelo menos, mostra de uma vontade incontrolável de escrever.
Às mãos chegou-me este
Jerusalém, terceiro volume de uma tetralogia acerca do mal, "O Reino". O livro é, na verdade, uma pequena porta para a retorcida mente humana. Mistura dentro das suas páginas as vidas de pessoas respeitáveis de uma sociedade severa com os pecados de prostitutas e assassinos. Mas quem são, afinal, os maus da fita neste livro?
Theodore Busbeck, médico, casa com uma ex-paciente com problemas mentais, que, mais tarde, acaba por mandar internar no hospÃcio mais admirado da cidade. Dentro dele, a mulher, Mylia, conhece Ernst Spangler, com quem começa uma relação de onde nasce uma criança. Theodore divorcia-se unilateralmente da mulher e decide criar o filho ilegÃtimo como do seu sangue, dando-lhe o nome de Kaas, um nome bonito de acordo com a mãe. Kaas herda, no entanto, uma deficiência fÃsica nas pernas do seu verdadeiro pai, Ernst. Depois do divórcio, Theodore não esconde da sociedade a sua tara com mulheres de esquina, de maneira a não ser um ponto fraco por onde possa ser atacado. Conhece Hanna, uma prostituta que é também protectora de um homem chamado Hinnerk, veterano de guerra que vive obcecado com o medo. Estes são os dados com que Gonçalo M. Tavares trabalhou. E de que maneira soube ele trabalhar.
Ao contrário do que parece ser a tendência nos últimos tempos, ou, pelo menos, das últimas obras que tenho lido, a escrita de Gonçalo M. Tavares não se esforça para ser diferente. É directa, quase incisivamente directa, simples, de tão simples que por vezes chega a roçar o irreal, especialmente nos diálogos que, a meu ver, são o ponto fraco deste livro. No entanto, pela sua simplicidade e clareza, a escrita ganha uma luz inesperada - não são perdidas páginas a criar ambiente para o leitor: é-lhe simplesmente dito qual é esse ambiente e, de uma maneira estranha que ainda não consegui identificar (muito menos reproduzir), esse simples acto tem um efeito poderosÃssimo. Ao ler
Jerusalém, ficamos totalmente imersos no mundo negro de Gonçalo M. Tavares sem que para isso o autor tenha precisado de recorrer a artifÃcios linguÃsticos desnecessários. É aà que encontramos a verdadeira beleza, se em mais lado nenhum houvesse, na simplicidade e na clareza com que somos guiados para um mundo diferente. Quase que adivinho, pela sua escrita, que Gonçalo M. Tavares tem algum passado ligado a universos cientÃficos ou de engenharia, ou pelo menos um interesse forte por estas áreas, já que a sua escrita clara, concisa, estruturada, é privilegiada pelas ciências exactas. No entanto, Gonçalo M. Tavares pega nessas ciências exactas, tal como o seu personagem no livro, e transporta-as para o mundo da incerteza e da subjectividade levando-nos de arrasto com ele.
Ao contrário daquilo que se lê em capas e contracapas,
Jerusalém parece-me longe de ser um livro sobre o mal, ou antes, parece longe de ser um livro sobre uma entidade (o mal) exterior ao ser humano. É antes um livro sobre a loucura, um livro louco em si mesmo com a cronologia da história completamente desarranjada, com repetições de cenas em partes distantes do livro, com personagens sãos mais loucos que os personagens loucos e personagens loucos em que a palavra
loucura não é suficiente para chegar sequer perto daquilo que é a sua mente. Este mÃsero artefacto, este leve
inclinar de letras, é, na verdade, um dos mais utilizados pelo autor ao longo do livro, usa-o a torto e a direito para marcar as frases que considera importantes e, mais uma vez, resulta.
Neste livro, ou deverei dizer, nesta
loucura de letras, Gonçalo M. Tavares tem personagens de puro génio: um médico que considera que a fé é tão importante para a saúde como a sanidade mental, o mesmo que gosta de prostitutas, e, o aspecto mais incrÃvel de todos, o mesmo que quer descobrir uma fórmula matemática capaz de descrever o comportamento do horror mundial ao longo dos próximos séculos: o seu objectivo é construir um gráfico capaz de descrever a chacina humana. Até que ponto poderá isto ser considerado racional? Talvez, se possÃvel, fosse uma boa descoberta para a humanidade, mas quem poderá prever o imprevisÃvel? Theodore Busbeck julga-se capaz.
Mas nem só do médico vive o livro, ele é um repositório da loucura humana. O director do hospÃcio, fiel guardador da sanidade, trata os seus pacientes como crianças, descarrega neles com tal fúria que Mylia compara o hospital a uma prisão. E depois temos Hinnerk, o veterano de guerra obcecado com medo, que vive em permanente estado de prontidão e é sustentado por Hanna, a prostituta. A personagem de Hinnerk é perturbadora, para o descrever numa palavra. Quando em criança nos falavam do homem do saco, aquele que nos perseguiria se nos portássemos mal, é Hinnerk encarnado. Ele é, na verdade, ameça entre as crianças do bairro, é conhecido simplesmente como
o homem. A sua mente é incapaz de funcionar como a de alguém dito normal. Mas aà se levanta a grande questão do livro: o que é uma mente
normal? Será normal um médico querer determinar o historial de horror de um mundo? O que determina o que é normal? Pior, quem determina o que é normal? Aterradora a maneira como Gonçalo M. Tavares relativiza tudo com um pressuposto tão simples.
Jerusalém não é aconselhável a quem tomar a sanidade mental por garantida: pode não estar preparado para todas as questões que este livro suscita. É um livro loucamente fascinante.
Escrito originalmente aqui.