Antonio
|
|
« em: Março 11, 2008, 22:47:46 » |
|
Este é o sétimo artigo de uma série em que escrevi sobre as minhas experiências em Ãfrica
No primeiro dia de Julho de 1974 largou de Luanda, rumo à ilha de S. Tomé, o Rovuma, Era um navio patrulha, fabricado nos estaleiros do Alfeite, lançado à água em 1969 e abatido ao efectivo da Armada em 1999. Viveu 30 anos mas fartou-se de viajar. Tinha uma guarnição de pouco mais de 30 homens, sendo só três os oficiais: O Comandante José Manuel Silva Dias, elitista e "bon vivant", casado com a bela francesa Jacqueline. O Imediato Fernando Ribeiro e Castro, jovem oficial do quadro, filho do Governador-Geral de Angola em funções no 25 de Abril e casado com uma jovem chamada Leonor que ficara grávida em Luanda. O primogénito nasceu quando ele estava em S. Tomé, pelo que teve direito a uns dias de férias junto da famÃlia. Finalmente o terceiro oficial, sub-tenente António Castilho Dias, o único miliciano, solteiro e bom rapaz.
A viagem foi feita à velocidade de cruzeiro de 18 nós e durou 45 horas. Foi a primeira vez que muitos dos membros da tripulação experimentaram navegação oceânica naquele navio que, pelas suas caracterÃsticas e missão, fazia normalmente navegação costeira. E era ver a malta enjoada! Alguns passaram o tempo agarrados a um balde onde lançavam a carga ao mar. Melhor dizendo, ao balde. Mas, diga-se em abono da verdade, que alguns aguentaram sempre como verdadeiros lobos do mar. Sem um vómito ou um momento de fraqueza. Um deles era o barbudo terceiro oficial. Outro era um grumete transmontano, de seu nome Pedreiro, e um dos elementos mais castiços da tripulação. E era também o que tinha menos tempo de Marinha. Por isso, foi o escolhido pelo comandante para ser a vÃtima de uma velha tradição da Armada portuguesa. Assim, como pouco antes de chegarmos à baÃa de Ana Chaves onde fica o porto da cidade de S. Tomé, passarÃamos a linha de latitude zero, a linha do Equador, o Silva Dias chamou o Pedreiro e disse-lhe: - Ó pá! Estamos prestes a passar a linha do Equador. E para não ficarmos presos nela, tu levas esta tesoura, vais para a proa do navio e, quando vires a linha...zás! Corta-la! Entendido? - Sim, senhor comandante – respondeu, meio desconfiado, o grumete. - Então pega na tesoura e vai já para a proa. Põe-te mesmo juntinho da flâmula. E não tenhas medo de apanhar com água. O mais importante é evitar um acidente com o navio – disse muito sério o Silva Dias ao mesmo tempo que lhe entregava o instrumento cortante. E o rapaz desceu da ponte para o convés de vante. Mas ele, que era parolo mas não era tolo, foi reparando nos camaradas (é a palavra usada para designar os outros militares – não tem nada a ver com polÃtica), quasi todos ali com sorrisos estranhos para assistirem ao corte da famosa linha. Como a ondulação tinha uns dois metros, sempre que a proa baixava caÃa forte “chuva†sobre o convés. E o nosso bom Pedreiro, já encharcado, recuava estrategicamente a cada molhadela e, assim, foi retardando a chegada à proa, apesar dos incitamentos do resto da rapaziada. Em determinado momento, já tÃnhamos passado o Equador e, como era preciso fazer as manobras de entrada na baÃa e atracação subsequente, o comandante chamou toda a gente aos seus lugares. E dizia triunfante o grumete no seu sotaque transmontano: - Queriam-me foder mas não me foderam! Ora toma! – e, todo molhadinho, dava gargalhadas e fazia manguitos.
Se olharmos para um mapa, vemos que a ilha de S. Tomé tem uma forma arredondada, mas alongada numa direcção próxima da norte – sul (mais rigorosamente nordeste – sudoeste). O comprimento total em planta ronda os 45 km e a largura os 30. Mas a caracterÃstica mais notória é a de ser a parte terminal de um enorme pico que começa nas profundezas do oceano e se ergue, imponente, 2024 m acima do nÃvel médio das águas do mar. Na época, a sua população era de aproximadamente 65.000 habitantes (na ilha do PrÃncipe havia cerca de 5.000 pessoas) A cerca de 3 km do extremo sul da ilha há um ilhéu, chamado das Rolas ou de Gago Coutinho, que é atravessado pelo Equador. Numa das tardes em que andávamos a dar voltinhas à ilha em missão de fiscalização nele desembarcamos e fomos ver a marcação feita sob as indicações do famoso almirante. E eu, como os outros, não deixei de abrir as pernas (salvo seja!) e de pôr uma no hemisfério norte e outra no sul. Quanto mais não fosse serviu para mais tarde contar aos amigos.
Uma tarde, nós, os três oficiais, resolvemos ir de carro por uma estrada que conduzia até uma estalagem que ficava na encosta do pico. Calculamos que estivesse mais frio nesse local devido à altitude, coisa que não acontecia cá em baixo, no sopé, pois aà a temperatura era quente, embora suportável, e fomos agasalhados. Quando saÃmos do carro lá em cima, na Pousada Salazar a 800 m de altitude, o frio era tanto que tomamos um café e ao fim de cinco minutos já estávamos de novo dentro da viatura para regressar à cidade. Eis como a pouquÃssimos quilómetros do Equador se pode apanhar um frio de rachar.
A ilha, coberta de frondosa vegetação, é de uma beleza magnificente, tendo algumas paisagens deslumbrantes. Vista do mar, quando navegávamos pertinho da costa, podÃamos vislumbrar uns traços doirados. Eram as praias, pequenas e estreitas, invariavelmente com os coqueiros debruçados sobre a areia. Quantas vezes não deixamos e navio e fomos até uma delas apanhar um côco, quebrá-lo e beber o seu saboroso leite, nadar, dar uns toques numa bola, ou simplesmente ficar ali a olhar, a olhar... O clima, naquela altura do ano era moderadamente quente, pelo que se passou todo o tempo sem excessos climáticos. O Silva Dias travou conhecimento com o Sr. Fangueiro, o responsável (também sócio, se não me engano) de uma pequena roça chamada Praia das Conchas e que dispunha de uma praia privativa para onde nós, os oficiais, fomos algumas vezes. Era a praia das Conchas, exactamente. As suas águas eram tão cristalinas que mergulhávamos nelas e podÃamos apreciar uma enorme variedade de pequenos peixes tropicais a menos de um metro da superfÃcie.
Estivemos em S. Tomé, cerca de três meses. Quasi todas as manhãs saÃamos de Ana Chaves e regressávamos ao fim da tarde. Como o Rovuma ficava atracado (encostado ao cais e preso por cabos) e não fundeado (preso ao fundo do mar pelo ferro – a famosa âncora) era preciso alguém que estivesse em terra durante a manobra de atracação e na largada do navio. Quem fazia esse papel era um funcionário santomense que, sozinho, corria a prender ou retirar os cabos dos quatro cabeços, que são aquelas saliências em ferro que todos já viram quando estiveram num cais. E não posso deixar de contar aqui o que me foi narrado por um colega do liceu, que seguiu a carreira de oficial da Marinha e que, numa altura em que era membro da tripulação da Sagres, fez uma visita a Leninegrado (S. Petersburgo) na U.R.S.S.: Quando lá chegaram e estavam a atracar, verificou espantado que, junto de cada um dos quatro cabeços estavam dois marinheiros e um sargento e havia ainda um oficial a comandar a tropa toda. Portanto, um total de treze homens. Assim percebe-se porque não havia desemprego na União Soviética, mas também porque deu o estouro que deu.
Quando se escreve sobre o S. Tomé colonial é inevitável dizer umas palavras sobre as roças. É sabido que o cacau era (e penso que ainda é, apesar de ter sido descoberto petróleo que vai ser repartido com a Nigéria, salvo erro) praticamente a única produção da ilha. Outras produções em quantidades apreciáveis, que me lembre, só a de cerveja, na única unidade industrial que por lá conheci. Uma das roças que visitamos, e que era também uma das maiores, chamava-se Ãgua Izé e pertencia ao antigo grupo CUF, dos irmãos Mello e que, depois de nacionalizado em 1975, originou a Quimigal. O que mais chamou a minha atenção foi o sistema de economia fechada em que lá, e eventualmente noutras roças grandes, os trabalhadores viviam. Tinham o seu salário, mas depois deixavam lá quasi tudo o que tinham necessidade de despender, pois na roça dormiam, comiam, compravam alimentos secos e molhados, roupas, tinham escola, cinema, enfim...o dinheiro dos homens e mulheres que não era economizado regressava aos cofres dos proprietários. Aquando dessa visita, os três fomos recebidos principescamente pelo responsável pela unidade de produção agrÃcola e sua esposa. Durante o almoço, para o qual fomos convidados, o serviço de mesa era prestado por uma casal de negros vestido a rigor com trajes tÃpicos, estando mesmo descalços. Terminada a refeição, e como mandam as regras da etiqueta, os anfitriões levantaram-se e dirigiram-se para uma sala ao lado onde seria servido o café; postaram-se na porta de transição. O Silva Dias, como frequentador da “high society†que era, foi o primeiro a levantar-se, dirigiu-se ao casal, agradeceu a refeição, beijou a mão da senhora e apertou a do cavalheiro. Eu fiquei aterrado! Nunca tinha beijado a mão de uma senhora (nestas circunstâncias, bem entendido) e fiquei sem saber se dava a beijoca ou não. Vai o Fernando a seguir e pespega outro beija-mão. Eu, o mais rústico de todos, acabei por cumprimentar a senhora com uma bacalhoada. Que diabo! O 25 de Abril tinha sido três meses antes e era preciso começar a fazer a revolução. Foi assim que eu dei o meu contributo!
Quando chegamos a S. Tomé, o comandante, ao verificar que eu tinha uma máquina fotográfica do tempo da Maria Cachucha, convenceu-me a comprar uma mais moderna. - Ó Tenente! Esta ilha tem tanta beleza que você vai tirar muitas fotografias e deve ter uma máquina como deve ser. Simpaticamente foi comigo a uma loja onde comprei uma Canon Canonete QL17 que era uma máquina muito jeitosa, de facto, e que usei durante décadas. Ainda a tenho, embora agora raramente seja utilizada. Também me convenceu a comprar uns rolos de slides em vez de fotografias tradicionais. Segui o seu conselho e acabei fazendo bastante uso dela. O pior foi que, quando cheguei a Luanda, tive de mandar os rolos para a Alemanha para serem convenientemente tratados. Muito tempo depois recebi-os todos negros. Não se aproveitou um único slide. Fiquei como o pano da paixão e, ainda hoje, não sei qual a causa de tão infausto acontecimento. Azar!
(escrito em 13 de Novembro de 2005)
|