josé antonio
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escrever é um acto de partilha
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« em: Fevereiro 07, 2009, 15:31:26 » |
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Julgava-se na sua quarta vida. E tanto acreditava que a todos dizia. Orgulhosa, não tanto assim, mas convencida. A primeira das vidas fora gasta por uma infância de trabalho sem escola, nem carinhos que não os beijos sempre disponÃveis da madrasta, das fugas à ira das irmãs mais velhas, por isso não muito irmãs e o trabalho no campo com os animais, para ela muito mais queridos e meigos que as pessoas. Depois uma juventude na casa dum médico aonde se formou e praticou desde a culinária mais complicada para os visitantes importantes da casa do mesmo até à sutura de cabeças rachadas, pernas partidas e até dentes retirados entre acrobáticos saltos na cadeira pelos pacientes. Nos tempos livres que não tinha, fazia enormes panelas de sopa para os miúdos pobres da paróquia, protegidos pela esposa do médico. E ainda lhe sobrava para fugir com a filha deles, patrões, para verem o circo com cavalos e palhaços e palhaços até serem descobertas e corridas pelo homem da bilheteira, nada satisfeito com a proeza das meninas. E ainda, porque arreliada e cansada de ouvir tão maus acordes soltos no piano pela menina patroa, acabou por se aplicar ao mesmo e a ensinar a tocar, de ouvido, música decente. A terceira das vidas ao longo de cinquenta e dois anos foi feita ao lado do único homem que namorou, sem saber que estava a namorar, e o casamento e ajudá-lo a ganhar o sustento para os filhos até os ver voando como aves soltas pelos pais, no céu, depois de atirados do último ramo da árvore aonde fica o ninho. A quarta vida iniciou-a há dez anos. Sozinha dentro das paredes, frias desde o falecimento do marido, único capaz de aquecer todos aqueles cantos com o calor dum carinho, modesto, porque com pouco dinheiro para a comida e impossÃvel para o luxo duma prenda. Ainda lembra com um brilho especial e vivo por cima das cataratas da vista a prenda que recebia dele, nos dias de aniversário quando acordava: - Um beijo forrado com desejos de muita saúde. E no último ano que passaram juntos, ainda sobraram economias para uma prenda de – dois jesuÃtas! Da terra dela. Depois tudo começou a piorar sem milagre de cura. – as costas, a vista, os pés, o coração e todo o mais. Era o desgaste natural da máquina, como lhe dissera o médico assistente. Sem rodeios, nem confusões. E tudo começou a ficar mais difÃcil: - o ligar do fogão, as teias de aranha gozando na sua cara e continuando no tecto do quarto, na cozinha mesmo por cima dos panos de limpar os talheres e a impossibilidade do passar a ferro e fazer a cama. Sem remédio. E teve de se render. Teve de esquecer o hábito da perfeição só dela, porque assim pensava e deixar que a ajudassem. Seria a quinta vida? E ajudaram. Rendida à realidade da fraqueza e incapacidade aceitou o lar que em tempos idos apelidara de cemitério, prisão e outras coisas similares. Quando lhe abriram a porta do quarto com cama e janela, rendeu-se aos três metros quadrados de futuro. Ali mesmo para recomeçar a viver.
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