gdec2001
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« em: Novembro 21, 2013, 22:33:30 » |
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E ela disse que ia pensar nisso. E quando ficou sozinha nem queria acreditar que tivesse tido aquela conversa com um homem que, para ela, era praticamente um estranho, embora já o conhecesse há bastante tempo. Não disse nada ao Mário e este era o primeiro segredo que guardava dele. Durante alguns dias, a Adélia e o António, mal olharam um para o outro e não se falaram além do bom dia, boa tarde. Até que subitamente, no fim de um dia de trabalho, ela chegou ao pé dele e disse: Venha comigo, por favor. Ele foi. Ela meteu-o num autocarro e só desembarcaram lá para perto da Estação do Oriente, no outro extremo da cidade. Conduziu-o a um hotel em que ela já marcara um quarto e, logo que entraram nele, ela começou a despir-se. Aà ele falou, então: Afinal o que é isto ? Estou a ajudá-lo a resolver o seu problema, disse ela. Não quero; não trago dinheiro, respondeu ele com rudeza. Ela ficou muito chocada. Vestiu-se rapidamente, desceu as escadas e saiu depois de pagar a conta. No caminho para casa pensou que merecera a humilhação por que passara; queria um homem inteligente e tratara-o como se ele fosse estúpido: era preciso conduzir a questão de outra maneira. Mas não desistiria. Todavia não teve coragem, durante alguns dias. Apenas, no dia seguinte, ao passar por ele, disse, muito baixinho: Desculpe, António. Ele tratava-a, aparentemente, como se nada se tivesse passado entre eles. Finalmente ela encorajou-se e pediu-lhe para ir almoçar com ela. A sensação que tinha, era a de que devia repetir tudo até ao momento em que correra mal mas ele negou-se, dando uma desculpa qualquer. Ela voltou a insistir no dia seguinte e no dia seguinte. E ele sempre se negava até que ela, um dia, lhe disse: Quer-me castigar. Aà ele amoleceu e concordou em almoçar com ela. Ela foi muito cautelosa, e corajosa no que disse : Que o que acontecera fora porque ela o desejava muito, mas que ele tivera toda a razão em reagir violentamente pois ela não tivera em consideração os sentimentos dele. Ele disse-lhe que não estava interessado, se o que ela sentia por ele era apenas desejo. Não sei exactamente o que sinto por si, respondeu ela. Mas isso significa que sente alguma coisa por mim? Ele nada respondeu mas olhou-a, como ela nunca havia reparado que ele a olhava.
-não basta ver a realidade é preciso olhá-la -
Alguns dias depois ela convidou-o para dar um passeio à saÃda da fábrica. Levou-o ao longo do rio mas em sentido contrário ao de sua casa. E, olhando o rio, falou do rio: De como, à s vezes era de mil cores e, outras vezes, quase negro; de como à s vezes ondeava lentamente e outras vezes parecia um pequeno mar, quase encapelado. Mas que era sempre diferente quer parecesse negro quer de mil cores porque, afinal, nunca é a mesma água, concluiu. (1) ................................................. ................... (1) Como se vê, não é muito difÃcil chegar à mesma conclusão a que chegou Heráclito. ................................................. ..................
O António ficou maravilhado porque as observações dela eram tão simples e tão verdadeiras. A beleza que ele, até aquele dia, encontrara no rio, era uma beleza que nem notava, na água, as cores e a eterna mudança; era uma beleza da totalidade, puramente abstracta. Mas como ainda estava um pouco desconfiado, apenas observou: Muito interessante. Mas ela entusiasmara-se e chamou-lhe a atenção para a ponte, distante, de que estavam a afastar-se. De como ela, incendiada pelo sol poente, parecia arder em chamas. E o casario, atrás dela, que talvez pertencesse a Almada mas mais parecia, visto à quela distância, pertencer a Belém, não a este, de Lisboa, mas aquele, do presépio que faziam na terra do seu pai, quando ela lá ia, em miúda, pelo Natal. E agora, em que apenas se viam os recortes das casas contra o céu, semelhavam as mansões de ladrões, ou de vampiros, que vira no cinema e que a atraÃam tanto como a aterrorizavam . E, como passavam por uma casa em mau estado, chamou-lhe a atenção para como, a derrocada do reboco, deixava feridas amarelas, cor de rosa escuro, mate, salmão e de inumeráveis outras cores que nem nome tinham ou ela não o sabia. E as pessoas? Que caras tão bonitas e outras tão feias. Como é que algumas pareciam perdidas nos seus sonhos e outras tão despertas e tão atentas para tudo o que se passa á sua volta.; como é que algumas parecem falar-nos sem abrir a boca e as outras a gente até tem medo de olhar para elas. E os animais, os cães, que se vêem nos quintais, são a mesma coisa. O António estava silencioso. Parecia-lhe que até à quela data fora cego e que ela estava a ensiná-lo a ver. E, no dia seguinte, foi ele quem a convidou para saÃrem juntos. E falou, contando como fizera o quinto ano do liceu, aquele que agora chamam o nono , e como fora obrigado a desistir de estudar mais, para trabalhar, pois os seus pais tinham algumas terras, o que lhes dava para comer mas, dinheiro, pouco. Como tinha chegado a matricular-se , para continuar a estudar, quando lhe morreu a mulher. Que, desde então, perdera a coragem para se meter em coisas novas. Que nasceu numa aldeia, perto de Cuba, no Alentejo, mas viera parar a Lisboa, quando fez a tropa, e por cá ficou. Mas que tudo quanto dizia não tinha o menor interesse e que o melhor era falar ela. Mas ela disse que não; que precisava de conhecê-lo e ele falou mais um pouco sobre a sua famÃlia e também sobre os seus sonhos: Que o seu maior sonho era inventar uma máquina que facilitasse o trabalho de tirar a cortiça dos sobreiros. Que matutara nesta ideia por ver o trabalho do pai para descortiçar dezasseis sobreiros, que tinha. Na verdade tinha um desenho e mesmo uma máquina em construção na sua garagem, mas o trabalho não avançava por falta de dinheiro. Além de que, nos últimos dois anos, andava muito desanimado, como já lhe dissera. Tinha um amigo, engenheiro, barra em matemática, que era sócio dele, naquela coisa da invenção da máquina, mas também não tinha muito dinheiro . A máquina seria governada por um controlador electrónico, uma espécie de computador, explicou. Ela também contou um pouco da sua vida: Que, como ele, também ela fizera apenas a nona classe e por razões muito semelhantes. Mas gostava muito de ler e já esgotara a biblioteca do bairro. E o teu marido?, perguntou ele, aproveitando a oportunidade para tentar compreender o comportamento dela, nos últimos tempos. Ela hesitou um pouco e depois disse: Andamos indiferentes. Quando o deixou,
Geraldes de Carvalho
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