gdec2001
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« em: Outubro 26, 2013, 20:47:37 » |
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Introdução ao escrito ou escrivinhação - ou lá como se diz
Nos meus sonhos tenho vontade de nunca acordar... Mas é preciso.
Hoje ainda acordei primeiro do que o Sol. Que preguiça! Estendi um braço e o outro, mais do que o primeiro, o estendi. E fiz o mesmo com as pernas e com os dedos dos pés gozando, deliciado, cada segundo destes sensuais movimentos. Experimentei levantar-me muito lentamente. Depois da terceira tentativa consegui pôr-me, mais ou menos, de pé e arrastei-me como que sonâmbulo até à janela para observar o horizonte que me pareceu um pouco enevoado. Ou seriam os meus olhos ainda mal despertos? Apesar disso vamos ter um bom dia de ti, sol, monologuei interiormente para mim mesmo e para ele. Tomei o meu banho mais para me aquecer do que para me lavar. Recostado na margem da banheira lutei para não adormecer novamente cogitando, como sempre, que isto de tomar banho todos os dias só podia fazer mal. Daqui a pouco, ó meu deus!, estarão todos levantados e vai ser um barulho in....suportável, pensei e pensei que não devia pensar. Que vou...não fazer, hoje? Estar reformado é realmente muitÃssimo bom porque não temos de fazer nada obrigatoriamente mas, na verdade, não é bom porque não temos nada que fazer a não ser que se invente o que dá muito trabalho, como dizem que os alentejanos dizem... Apesar disso tenho várias ideias e, uma delas, é a de começar a escrever uma novela — ou mesmo um romance, digamos — Mas sobre o quê e para quem? Quem poderá interessar-se pelo que se passa á minha volta se é, fundamentalmente, o mesmo que se passa à volta de toda a gente. Talvez eu possa fazer como o Proust, que também escreveu sobre o que se passava à volta de toda a gente e agora é lido com enorme deleite porque as coisas já não se passam, exactamente, da mesma maneira. Ainda que não só, nem mesmo principalmente, por isso naturalmente... Mas quem é que, é, hoje, um Proust? — Que mania esta de desfazer sempre nos dias de hoje como se não fossem, ainda que imperceptivelmente, melhores do que os dias de ontem !— E como podia ele, que viveu apenas uma vida, que nem foi longa, recolher tantas e tão variadas experiências? Na maior parte da minha vida não vejo nada que valha a pena contar e nada, realmente, me acontece. E quando me acontece alguma coisa, quando alguma coisa...vivo, fico tão obcecado que depois tudo me aparece como que numa neblina que nem consigo decifrar. Ou melhor: Parece que me acontece muita coisa mas sempre que estou mergulhado nessa espécie de sonambulismo acordado que não me permite discernir o que é, realmente, realidade — se é que existe isso, a que chamam Realidade; assim, maiusculada e tudo. Como será possÃvel viver uma experiência e contá-la, como se fosse um conto. Melhor fora, talvez, que inventasse mas como pode inventar-se o que, de alguma maneira, não se viveu ou não nos foi contado. E o que me contam não é meu. Talvez possa eu, contar as minhas experiências mas misturadas e enevoadas, tal como as recordo. Talvez...eu possa contar o que me contam depois de me ter apropriado dessa matéria, de a ter feito minha mesmo. Como se a tivesse vivido. Talvez... Entretanto, e felizmente, o dia acabou. Menos um dia deste raio de vida, pensei eu e pensei que não devia pensar. Que se lixe a escritura, a escrituração, a escrevinhação ou lá como se diz, reincidi. Mas é preciso confessar que esteve, realmente, um dia muito bonito, neste quase fim do outono; sem calor mas cheio de sol que sangrava e ameaçava mesmo querer chorar quando nos abandonou de passo miúdo, muito, muito relutantemente. Quem parece ter gostado mais, foram a folhas das árvores, no meu quintal. Na verdade haviam acordado enregeladas, coitaditas — sim, coitaditas, porque não? olé!— É que “coitadinhasâ€, como o meu computador queria que eu escrevesse, soa-me miserabilista o que seria absolutamente impróprio para aplicar à s queridas folhas das minhas árvores. Bom...É que a noite fora, de facto, bastante fria. Uf!... Até amanhã, sim?
Geraldes de Carvalho
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