Olá!
Novo por aqui a convite da Laura. Melhor forma de apresentar-me do que com um trabalho?
http://eraumavezumrapaz.net/wp-content/uploads/2008/06/232.pdf.
Não sei muito bem as normas por cá, mas prefiro publicar em pdf por duas razões: para manter a formatação do texto, e para evitar, ainda que de forma ligeira, o roubo da propriedade intelectual.
Cumprimentos a todos!
[EDIT] Então vou deixar o link para quem quiser ver a formatação original e em baixo o texto completo!
Cheers---------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Estou cansado de olhar para este tecto. Também estou cansado de olhar para este candeeiro. E para o guarda-fatos. E para o maldito relógio. Mais cansado ainda estou de olhar para a minha mulher que descansa ao meu lado. Vá lá, ao menos não ressona. Antes o fizesse, pelo menos tinha alguma coisa de que me queixar. Não posso acender a luz. Não posso, nem quero, ligar a televisão. Não quero ler. Não quero escrever. Quero dormir, mas não consigo. Quero-me levantar mas tenho medo de a acordar. E como ela dorme descansada... tal e qual um anjo. Como se eu soubesse com o que se parece um anjo. Como se existisse tal criatura. Talvez se eu me mexer muito, muito lentamente, levantar os lençois, isso, agora primeiro a perna esquerda para fora, já está, agora a direita, exactamente. Arrepiei-me, mas não está frio. De pé, olho para a pessoa com quem me casei há anos, embrulhada nos lençois e na penumbra, imóvel se retirarmos os movimentos respiratórios da equação. Procuro encontrar na escuridão aquela mulher por quem me apaixonei, mas o que resta é a casca bonita do que em tempos foi uma pessoa fascinante. Vou mijar, talvez a bexiga vazia me ajude a cair no sono, nas malhas do João Pestana, do Morféu, do inserir-nome-de-personagem-mÃtica-ligada-ao-sono-aqui. Ao passar pelo relógio da sala a hora é-me familiar. Como me são todas as horas das noites que acabo por passar sempre em claro. 04:43, consigo ler no visor digital do vÃdeo da sala. Já estou sem pregar olho já lá vão umas duas horas. Todas as noites repito esta história. Adormeço num sono sem sonho e acordo sempre, invariavelmente, as duas e meia da madrugada. Ainda vou escrever um livro com isto, a editora está-me sempre a foder o juÃzo à espera do best-seller que lhes vai salvar as vendas. Com a pila na mão, a sentir o fluÃr de mijo pela uretra, quero é que se fodam. Cambada de sanguessugas. Não preciso deles para nada. Ainda para mais com a internet e essas tretas todas nem sequer preciso de publicar para ser publicado. É claro que para isso preciso de escrever, pelo menos. Sacudo e guardo o material de guerra dentro dos boxeurs e ainda me atrevo a sentar ao teclado, já que estou acordado, a ver se com o fluxo de urina me chega um fluxo de génio. Já estou cansado de repetir esta rotina todas as noites que passo sem dormir, e, estou ainda mais cansado de todas as noites desligar o computador com o ecrã em branco. Vamos voltar para a cama, já estou fora dela há mais de uma hora, a ver se isto surtiu efeito. Com cuidado agora, não quero acordar a patroa, pé ante pé, entro no quarto e repito a operação que com sucesso me tirou dos lençois só que desta vez, ao contrário. Ela diz-me qualquer coisa como um “Ainda não conseguiste dormir?†abafado pela almofada, que eu respondo com um terno beijo na testa e um apalpão na mama que estava mais à mão. Pode ser que dez minutinhos de sexo me ajudem a adormecer, mas ela não está para aà virada. Vira-se é para o outro lado, e mal sentiu a minha presença. Pobre mulher, podes não merecer, mas és obrigada a levar com isto... E já é de manhã. Mais vale levantar-me, tomar banho, fazer a barba de três dias e ler o jornal. Tomar o pequeno-almoço e isso tudo. Logo tenho mais outra noite para não dormir.
O dia passou.
Que foi isto? Acordei mais uma vez. Onde está o raio do relógio? Pois, duas e trinta e dois, não falha. Raios, se eu quisesse um despertador não era tão preciso. Desta vez era capaz de jurar que sonhei alguma coisa nestas duas horas. Mas o que era? Respiro enquanto olho para o tecto que estou farto de examinar nestas noites todas. O que sonhei eu? Era escuro, era de noite. Ela estava lá, a que está deitada aqui ao meu lado. Eu estava lá. Mas o que era? Com que sonhei eu? Talvez possa usar isso dentro do meu próximo livro. Ou talvez possa pegar nesta insónia infernal e trabalha-la de maneira a tornar isto numa saga interior interessantÃssima em que o personagem... não, esquece. Feito e mais que feito, além disso não gosto de sagas interiores. Talvez um copo de água me ajude a dormir. Lá vou eu, sair sem acordar a mulher, um pé de cada vez e depois o resto do corpo, a deslizar para fora da cama. Hoje está mais frio que nos últimos dias. O tempo tem vindo a arrefecer gradualmente. E se o copo de água não me fizer ganhar sono, estes pensamentos metereológicos certamente o farão. Vou vestir as calças do fato de treino e a sweatshirt, vou dar uma volta ao bairro. Ver o que se passa nesta terra à s tantas da manhã. Vou levar o caderno comigo, quem sabe não me chega a inspiração na boca de um qualquer rafeiro que ande à caça da cadelagem? E lá está esta ideia estúpida da inspiração outra vez, criada só para manter os escritores preguiçosos confortavelmente instalados na sua preguiça. Hum, as ruas estão cada vez mais sujas, parece que a câmara já nem se preocupa em fazer a recolha. Se calhar têm medo de levar um vagabundo por engano e depois serem processados em milhares de contos dos antigos por maus tratos. Vou voltar para casa, de caderno vazio, de sono vazio. Sempre está ligeiramente mais quente em casa, e o céu começa a clarear. Tenho de ir tomar o banho da manhã, fazer o pequeno-almoço da cinderela e levá-lo à cama. É remédio santo para uma rapidinha antes dela sair de casa.
O dia passou.
Desta vez tenho a certeza que o sonho existiu. E foi estranho. Foi neste quarto. Nesta cama. Lembro-me disso. Lembro-me da mesma maneira que me lembro de olhar para o relógio quando acordei e ver em letras vermelhas os números zero, dois, o sinal de pontuação dois pontos, e os números três e dois. Também me lembro da minha mulher gritar “Pára!†um milésimo de segundo antes de eu acordar. Ou terá sido depois de acordar? Não, tem de ter sido antes, ela permanece como uma rocha aqui ao meu lado, imune as minhas recorrentes insónias. O tempo mudou. Esta noite está quente como nunca. Ainda bem, ela sempre foi muito calorenta. O que quer dizer que resolveu dormir nua, coberta apenas por um fino lençol a tapar-lhe, agora que a destapei um pouco mais, apenas os joelhos. Faço isto por vezes como um exercÃcio de escrita. Vou buscar o caderno, naquela operação que tenho de fazer para sair da cama sem a acordar, e, encostado à porta, começo a escrever e a descrever aquilo que os meus ohos conseguem vislumbrar na penumbra. Escrevo muito lentamente, para poder apreciar correctamente cada pormenor que qualquer um dos meus sentidos possa captar. Páro para achar o adjectivo que mais se aproxima daquilo que estou a captar, e, não raras vezes, chego à conclusão que a LÃngua Portuguesa não tem adjectivos suficientes. Quando acabo de descrever a tinta o quadro que está na minha frente, pouso o pequeno caderno na mesa de cabeceira e deixo os meus pensamentos voarem um pouco mais à cerca daquela criatura que todos os dias se deita comigo naquela cama e que parece vacinada contra insónias. Chega-me ao nariz o cheiro amargo da raiva por ela conseguir adormecer enquanto eu tormento. Por isso e por tantas outras coisas. Aquela não é a mulher com quem eu casei. Transformou-se de tal maneira que está a aproximar-se do irreconhecÃvel. Já quase não falamos, não fazemos amor, não conversamos, não nos insultamos, não discutimos, nem sequer fodemos. O que fazemos é mera rotina. E, na maior parte das vezes, é como se estivesse a assistir à cena do canto da sala, sem qualquer controlo sobre aquilo que o meu corpo faz ou diz. Chego a conclusão, enquanto olho para o relógio e percebo que foi mais uma noite sem sono, que realmente a barreira entre o amor e o ódio é pequena. E neste momento, estamos os dois mais para lá do que para cá, sem qualquer intenção de voltar ao que um dia fomos. Visto-me para mais um dia, não sem antes lhe passar a mão pelo cú para acalmar a erecção matinal.
O dia passou.
Desta vez o sonho foi ainda mais claro. O grito da minha mulher foi mais estridente e a cama estava claramente manchada de sangue. O dela. Vi na minha mão a faca do crime. No meu olhar estava o esgar de um assassÃno. O meu coração drogado com adrenalina. E a minha mulher ali, a desfazer-se em sangue nos lençois. Sangue tão vermelho como o mostrador do relógio que marcava as duas e trinta e dois quando acordei. Olhei para a companheira para garantir que tinha sido um sonho e só respirei quando a vi a fazer o mesmo. Ainda não foi desta vez que a insónia me largou. Mas pelo menos tenho aproveitado para sonhar um pouco. Não é um desperdÃcio total. Sempre posso usar esta cena no meu próximo livro. Quem sabe não sai disto um clássico da literatura moderna? Os cabrões lá na editora iam ficar contentes. E o meu ego também. Volto a sair da cama, e ela volta a não acordar. Odeio-a por isso. E por tantas outras coisas. Silenciosamente, vou até à janela da cozinha fumar um cigarro. Deixo o fumo horrÃvel preencher a minha boca. Detesto o sabor do fumo. Detesto o cheiro do cigarro. A única coisa que dele aproveito é o relaxamento que a nicotina provoca no cérebro. E mesmo isso está-se a provar ineficaz em mim. Enquanto deixo os meus pensamentos envolvidos em novelos de vÃcio, penso no sonho que se tem vindo a construir de dia para dia, aos poucos, nas poucas horas de sono que vou conseguindo aproveitar. A janela para o meu subconsciente está a tornar-se uma porta escancarada. Quero ver-me livre daquela mulher. Quero matá-la. Tirá-la da minha vida, da mesma maneira que o lixeiro finalmente tira aquele entulho debaixo da minha janela. Saúdo-o com um acenar cúmplice de quem não pode dormir, ele não responde como se fosse o meu gesto uma provocação. Não o censuro. As horas vão passando, as beatas na cozinha vão aumentando, o sol vai despontando. Deixei-me embrenhar no meu subconsciente de tal modo que ele deixou o prefixo 'sub' e passou a ser somente o meu consciente. É hora de enfrentar a música. E é manhã. Foi mais uma noite sem dormir.
O dia não passou. Porque acordei finalmente.
Acordei com a face da minha mulher por cima de mim. Estás bem amor? perguntou ela. Olho confuso para aquela cara que me habituei durante tantos anos. Que se passou? grunho. Ao que parece toda a minha insónia não passou de um sonho. A mulher de tantos anos acordou quando me viu inquieto na cama, ao contrário daquilo que eu tinha sonhado. Volto o olhar à procura do relógio. Não o consigo ver, ela está a tapar-me o campo de visão. Estás bem? voltou a perguntar. Sim querida, respondo, foi só um sonho muito, muito estranho. Sabes aqueles sonhos que parecem uma espiral, que se repetem e repetem até perceberes que é um sonho? Ela diz-me Não, mas a tua cabeça funciona de maneira especial, é parte do teu encanto, enquanto me beija a testa e se volta a deitar ao meu lado. Vejo finalmente o relógio. Os dÃgitos meus conhecidos lá estão estão outra vez. O dois e o três. São duas e trinta e dois, digo meio estupefacto. Sim, diz-me a companheira. Amo-te, digo-lhe eu. Ela levanta-se sobre mim, como estava quando acordei, sorri um sorriso meio vazio de tristeza e completamente vazio de alegria, diz-me na mesma voz doce que me fez apaixonar por ela, Não, já amaste em tempos, agora já não.
Ao olhar para o tecto que fitei durante tanto tempo no meu sonho, percebo isso finalmente.
Fim.