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Autor Tópico: A vingança de Caim - I  (Lida 1720 vezes)
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damasco
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« em: Agosto 07, 2008, 23:04:24 »

A manhã tinha nascido mais tarde, deixou-se baralhar com a penumbra da noite; manhã diferente, conduzida pela mão incerta de um verão atípico.
Às 8:00 dessa manhã difusamente segmentada, o Sr. Abel acordava rabugento de mais uma noite mal dormida. Na verdade, não se lembrava de alguma vez ter dormido bem. Poder-se-ia pensar que isto constitui uma espécie qualquer de fatalidade. Nada mais longe da verdade - mantinha, até, um certo orgulho neste mau acordar. Dirigia-se em passo arrastado, olhar pregado ao chão, a apalpar as paredes da casa, facto perfeitamente aceitável, não fosse o facto de a habitar havia já 22 anos, levantava o tampo da sanita, que, não obstante viver sozinho, mantinha religiosamente descido, e mijava.
Embora o Sr. Abel asseverasse ter uma visão matemática e funcionalista da cidade, mantinha alguma afeição e apego pela zona em que vivia. Além disso, recusava ultrapassar a linha simbólica (e de água, neste caso) que dividia a cidade a meio. O rio que, nem de propósito, se chamava Rio do Meio – ainda que não fosse o nome oficial, era assim que todos lhe chamavam -, partia a cidade em dois e estava entrincheirado entre as ruas 23 e a 24, paralelas, ruas perante as quais o Sr. Abel mantinha respeito e distanciamento, já que era a elas que cabia a tarefa religioso-militar de dividir a cidade ao meio. Sempre que o Sr. Abel tinha pendente algum assunto que o levasse à zona fronteiriça, o que evitava a todo o custo, desacelerava nitidamente a passada, ele que era homem convicto e ágil, e baixava ligeiramente a cabeça em sinal de respeito. Como advogado, nada preenchia mais o seu imaginário que ver-se participar na elaboração de uma lei que declarasse a interdição daquela zona a humanos. Em abono da verdade, o Sr. Abel sabia que isso era um perfeito disparate e não passava de uma fantasia completamente oca e desvairada – ele mantinha crítica sobre os seus próprios pensamentos, simplesmente não conseguia deixar de os ter. O Sul da cidade era-lhe completamente insuportável, não que o conhecesse de vivência vivida (só lá esteve uma vez, criança de colo, a alimentar macacos a amendoins, no Jardim Zoológico), mas porque toda a família, a quem declarou guerra silenciosa por motivos passionais, tinha para lá mudado há 25 anos, não resistindo ao apelo dos preços mais baixos.

Àquela mesma hora, mas no extremo oposto da cidade, o Sr. Caim que, por mero acaso, não é diabético nem sequer conhece o Sr. Abel, abria a janela do quarto. Não era pela visão que poderia ter da rua que o fazia, que, diga-se, seria até uma maldição para o comum dos mortais, incluindo o Sr. Abel, mas sim porque detestava espaços fechados. Sempre tinha vivido no campo, onde, orgulhosamente, mantinha janelas e portadas abertas, estivesse canícula ou nevasse (o que aconteceu apenas uma vez, pelo que se lembra). Estava naquela casa apenas de passagem, há 26 dias. Veio em auxílio de uma tia que se encontrava muito mal de saúde, tão mal que, quando a encontrou, já não a tinha: debruçada silenciosamente e ao escuro sobre o bidé, braços caídos e mãos encarquilhadas, esperava alguém que soubesse o que lhe fazer da morte. A tia do Sr. Caim acabou por ter um funeral tranquilo e digno, ainda que fosse toda torta dentro do caixão, a custo fechado por culpa de um rigor mortis violento.
Ao Sr. Caim, depois da morte da tia, ao que veio a saber, a única familiar que lhe restava por via de uma série de eventos infelizes que, um destes dias, haverá de se dar ao trabalho de enumerar, classificar e ordenar, de modo a ele próprio perceber a sequência dos eventos, coube a inenarrável tarefa de lhe pôr os assuntos em ordem. Ainda que, ao momento, e mesmo passado os referidos 26 dias, não soubesse muito bem o que tal pudesse significar, passava o tempo todo de volta dos documentos (assim lhe chamava ele para se dar ares de importante) da tia. Analfabeto ele não era mas, ainda que, aqui e ali, mostrasse dificuldade em interpretar certas palavras e frases mais complexas, simplesmente era tarefa demasiadamente absurda para o entreter nos próximos, digamo-lo abertamente ainda que com exagero, tendo em conta o ritmo e a produtividade que vinha mostrando, 27 anos. Na aldeia de onde veio, tudo ficou ao cuidado dos vizinhos. Não é que ele tivesse grande coisa para cuidar, nem grandes pressas – vantagens de ser carpinteiro: a madeira ganha com a espera, dizia. Para ser o mais honesto possível, ainda que o Sr. Caim não o queira admitir por ser questão de orgulho, logo particularmente melindrosa, nos últimos dias tem vindo a alimentar a ideia de contratar um especialista no assunto, nomeadamente um advogado. De onde o Sr. Caim vem, há um advogado, mas cuja única experiência conhecida se compõe de assuntos trazidos por maridos encornados e, como tal, com ele não poderia contar, não fosse o homem farejar por ali encornamentos para retirar proventos – não era circunstância que quisesse ver indexada à memória da tia. Além disso, começava a sentir-se demasiado circunscrito naquele ambiente, cuja falta de cuidado diário e continuado, ele que se limitava a dormir no sofá e a fazer visitas frequentes à despensa e ao frigorífico, criava um pó incómodo que lhe irritava a garganta – ainda que estivesse habituado ao pó da madeira, este era completamente diferente: não tinha sabor nem aroma.
Da janela da casa da tia, entretanto morta em circunstâncias normais de quem morre após ter vivido durante muitos anos, assim dizia um documento qualquer que bem gostaria de recuperar, o Sr. Caim olhava a cidade. Estava uma manhã diferente, conduzida pela mão incerta de um verão atípico. Em frente, expostos três caixotes de lixo de espécies diferentes, coxos e batidos, à direita arrabaldes de erva seca, amarela viva, edifícios pobres e gastos do uso, duas ou três pessoas mal vestidas, uma delas arrastando um caixote de plástico; através de uma nesga esmagada entre dois edifícios de má memória, ainda pior de volumetria, vislumbrava um fio de rio, adivinhado bem longe, azul-escuro aquoso.

(Continua. Espero...)
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Guacira
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« Responder #1 em: Agosto 07, 2008, 23:47:36 »

eu também...
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marcopintoc
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« Responder #2 em: Agosto 08, 2008, 09:25:53 »

Viva Damasco

Bom conto cheio de "numerologia" literária . Quanto ao "continua,espero" faço votos que seja afirmativo.

Abraço
Marco
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damasco
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« Responder #3 em: Agosto 11, 2008, 13:18:03 »

Grato pelos comentários.
Na verdade, não sei mesmo como irá continuar, embora tenha uma ideia, ainda insipiente, de como irá acabar. Há-de ver-se.
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