Capitulo II
Os sonhos. O treino. O Tyal.
“Este treino é importante.” Lugh pousou ambas as mãos nos ombros de Laho olhando-o directamente nos olhos. “É mesmo importante.”O sono de Laho foi interrompido por inúmeros sonhos. Primeiro sonhou que Enki proferia o Pacto e invocava um Poder Superior que acabaria por virar-se contra si mesmo e destruí-lo. Depois sonhou que ele mesmo proferia palavras na Língua Antiga e que morria instantaneamente. Por último, Laho sonhou com uma pequena cidade desconhecida.
As casas pareciam todas pequenos palácios, com telhados de madeira pintados de vermelho e portas feitas de bambu verde. As pessoas passeavam em pequenos coches puxados por homens vestidos com compridas túnicas brancas. Todos os homens usavam um chapéu, pontiagudo e largo, e chinelas de madeira. Tinham o cabelo completamente rapado e da parte de trás dos seus chapéus pendia uma longa trança negra; as mulheres usavam o cabelo colhido atrás, formando uma longa trança, ou apanhado para cima, formando um carrapito, e vestiam túnicas justas, vermelhas com bordados áureos, ou azuis com bordados argênteos. Os seus pés descansavam em chinelas similares às dos homens.
O tempo parecia voar e as pessoas pareciam andar a grande velocidade. Depressa se fez noite e depressa chegou a madrugada.
Um homem saiu de sua casa e encaminhou-se à saída da cidade, em direcção a um grande rio.
Todo o cenário ficou negro, o sonho começava a desvanecer.
Ouviu-se bater à porta.
Um homem gritou: “Laho, Laho!”
O sonho reapareceu.
Um relâmpago cruzou os céus e embateu numa árvore no meio de uma pequena clareira; um círculo com uma estrela dentro apareceu no chão, brilhando com uma luz branca; uma rapariga materializou-se no centro do círculo, desnuda; um homem chegou a correr. O cenário voltou a ficar negro mas o sonhou voltou a aparecer numa sequência de flashes.
A rapariga a entrar na casa do homem; uma mulher e duas crianças idênticas a descerem as escadas.
A voz voltou a ouvir-se: “Laho! Estás aí?”
A rapariga e a mulher sozinhas na cozinha.
A porta voltou a bater.
A cara da mulher articulando uma pergunta: Como te chamas?
A cara da rapariga articulando uma resposta: Peowny.
Laho acordou sobressaltado e sem saber onde estava.
A porta estremecia enquanto que alguém batia constantemente da parte de fora.
Laho apressou-se a abrir a porta e deparou-se com Lugh, o Chefe do Exercito de Falindûr.
Lugh era bastante alto e Laho teve de esticar o pescoço e olhar para cima para lhe poder falar.
“Que foi? Que queres?” perguntou Laho aborrecido, o coração ainda a bater fortemente.
“Pega nas tuas coisas. O teu Mestre não te disse para ires ter comigo?”
Um raio de entendimento cruzou a cabeça de Laho.
“Sim, disse. Devo ter adormecido e não dei conta do tempo. Desculpa.”
A última palavra foi proferida com amargura. Laho não via qualquer razão para se desculpar além da boa educação. Nunca simpatizara com Lugh.
Lugh não parecia ter notado no tom daquela palavra e ficou parado a olhar para Laho, esperando que ele se decidisse a pegar nas coisas e seguir com ele. Este, sem se demonstrar nada motivado e com uma calma tão grande como o sono que sentia – que era muito –, dirigiu-se às prateleiras na parede oposta à da janela e tirou de uma delas uma fita cinzenta. Dirigindo-se à saída do quarto enrolou a fita em volta da cabeça de forma a que esta lhe tapasse os olhos. Depois seguiu em frente ignorando Lugh e deixando-o para trás. O seu coração acalmara e os seus pensamentos saltaram do sonho para o que iria ele e Lugh fazer.
“Hey, espera!” gritou Lugh quando reparou que Laho já ia a meio caminho de descer as escadas. “Ouviste?! Eu disse para esperares!” E apressou-se até Laho.
Ambos desceram as restantes escadas – que eram imensas pois estavam no topo da Torre e esta tinha cinco andares – e saíram para a rua.
O sol já não estava tão alto como de manhã e o vento adensara-se. Laho seguiu em frente mas depressa teve que parar pois reparara que não sabia onde se dirigir. Lugh, que estava sempre a ficar para trás, aproximou-se dele com um olhar reprovativo.
“És uma peste! Não sabes esperar?”
Laho virou-se para olhar para ele.
“Onde vamos?” perguntou Laho meio apressado.
“Vamos para onde eu disser que vamos e tu vais seguir-me sem pressas.” respondeu Lugh, mexendo os braços conforme falava. “Entendido?”
“Onde vamos?” repetiu Laho.
Lugh levou as mãos à cabeça. “Ahhh, mas que peste que és! Segue-me.”
Lugh parecia tanto importunado como divertido com a situação.
Ambos seguiram em frente pela estrada passado por entre as habitações da cidade. Laho reparou na vida quotidiana das pessoas. As mulheres estavam à porta das suas casas lavando a sua roupa em tanques de pedra que pareciam brotar do chão. Algumas crianças brincavam aos guerreiros com pequenas espadas e escudos de madeira. Nenhum homem se encontrava nas redondezas. Uma das crianças viu Laho e afastou-se dos outros para lhe poder falar.
“Laho, Laho!” chamou a criança, aos pulos, aproximando-se. “Onde vais, Laho?”
Laho esboçou um pequeno sorriso. Poucas eram as pessoas que pareciam simpatizar com ele. De todas as crianças era apenas esta que lhe falava.
“Vou treinar, Mikhé.” disse Laho pondo-lhe a mão em cima da cabeça. “E tu, que andas a fazer? De novo a brincar aos guerreiros?”
A criança corou. “Sim. A minha mãe diz-me para não o fazer mas eu já lhe disse que quero ser um guerreiro quando crescer, tal como o meu pai.”
Laho sentiu compaixão para com Mikhé. O pai de Mikhé havia morrido há muito pouco tempo numa missão de reconhecimento a Eleniri, a terra deserta. Desde aí que Mikhé, com apenas cinco anos, decidira tornar-se num guerreiro como o seu pai. Mas a sua mãe não gostava da ideia. E com razão. Foi muito difícil ver o seu marido morrer, não queria que o mesmo viesse a acontecer com o seu filho.
Laho agachou-se e disse baixinho ao ouvido do pequeno Mikhé:
“Eu não te devia dizer isto, mas continua a treinar. Tem cuidado é para a tua mãe não te ver, está bem? E tem cuidado com as espadas, não te magoes.”
“Eu não me magoo. Eu sou o melhor guerreiro de Falindûr, ninguém me vence!” respondeu Mikhé sorrindo e batendo com o punho no peito.
Laho levantou-se sorridente. “Vá, vai lá. Diverte-te.” E a criança afastou-se, juntando-se de novo aos seus amigos. Laho continuou o caminho com Lugh.
“O Mikhé é um grande rapaz. Um dia será um bom guerreiro.” afirmou Laho como se estivesse a falar consigo mesmo.
“Sim. Foi uma pena o pai dele ter morrido. Mas nessa missão perdemos quase todo o pelotão. E pouco soubemos, essa foi uma tragédia ainda maior que as mortes.” replicou Lugh.
“Pior? Como pode a falta de informação ser uma tragédia pior que todas aquelas mortes?” perguntou Laho boquiaberto. Continuaram a andar em direcção à saída da cidade.
“Os mortos podem ser substituídos.” explicou Lugh após um largo momento de reflexão. “Morrem cem no campo de batalha no mês seguinte já lá temos mais cem. Mas se não temos informações sobre o nosso inimigo não só perderemos esses outros cem como todos aqueles que para lá enviarmos. Por isso, a falta de informação é a maior tragédia.”
“Não posso aceitar isso, Lugh. Não posso nem nunca aceitarei. Se algum dia comandar algum pelotão tomarei todas as precauções para que ninguém morra. Nem que tenha que morrer por alguém.”
Lugh deu uma pequena gargalhada. Não era uma gargalhada de divertimento, era mais uma gargalhada de alguém que já viveu muito e que sabe que Laho, ainda jovem como era, precisava aprender muito.
“Eu não morreria por ninguém. Sou muito mais valioso para estas terras que a maior parte dos habitantes. Quanto mais deveriam ser os outros a morrer por mim.”
“Falas disparates.” concluiu Laho.
Não falaram mais. Continuaram a andar já fora da cidade. Estavam já perto da torre de vigia Este quando Lugh agarrou o braço de Laho para que este se detivesse.
“Aqui deve chegar.”
Laho olhou em volta. Estavam no meio de nenhures. Que treino poderiam eles ali fazer se não tinham nada com que lutar?
“Queres perguntar alguma coisa?” disse Lugh ao ver a cara confusa de Laho.
“Sim.” Laho olhou em redor. “Como vamos treinar? Não temos aqui nada. Nem espadas nem escudos.”
Lugh soltou um sorriso matreiro e disse: “Nem precisamos. Tenho em mim tudo o que precisas para um combate.”
Lugh levou a mão ao bolso e dele tirou um pequeno saco castanho. Depois ergueu o saco à altura dos seus olhos e disse: “Sila”
Laho compreendeu imediatamente. Com a Sila poderia criar fosse o que fosse a partir do solo.
Lugh abriu o pequeno saco para revelar o pó púrpura. Laho aproximou-se e retirou um pouco espalhando-o no chão de forma a desenhar um circulo com uma estrela dentro. Um Circulo de Transição.
“Já sabes usar Sila?” perguntou Lugh, desconfiado.
“Só sei fazer o círculo. O meu Mestre nunca me ensinou mais nada. Vais ensinar-me?” perguntou Laho esperançoso.
“Não” disse Lugh. “Não tenho autorização para isso. Vim aqui para te ensinar a Arte da Espada, nada mais.”
Laho mostrou-se aborrecido e tentou contestar mas Lugh levantou o braço impedindo-o de dizer o que quer que fosse. Depois, sem dizer mais nada, baixou-se e colocou ambas as mãos perto do Círculo, fechando os olhos ao mesmo tempo. Durante uns segundos nada se passou e Laho já começava a desconfiar se Lugh conseguia mesmo manusear a arte da alquimia, mas passado um bocado Laho começou a sentir a energia emanada pelo círculo. Em meros segundos o círculo soltou uma luz púrpura cintilante e no chão apareceu um escudo feito de pedra sólida.
Laho soltou uma risada de gozo.
“Ah! Só isso? Não consegues mais nada? Só um escudo? Desculpa mas se vamos treinar acho que precisamos de mais coisas.”
Lugh não se mostrou nem ligeiramente afectado por tal réplica. Mostrou-se emproado, como que se soubesse algo que Laho ignorava e que lhe dava um lugar de maior importância naquele momento.
“Se vamos treinar?” perguntou Lugh, a sua boca cortada num grande sorriso que mostrava todos os seus dentes. “A única pessoa que aqui vai treinar és tu. Pega no escudo.”
Laho abaixou-se para pegar no escudo. “Mesmo assim se só eu vou treinar ainda preciso de-“
A sua fala foi cortada pelo grande esforço que estava a fazer para poder erguer o escudo de pedra.
“Como vês não tens nem força para empunhar um simples escudo, queres já pegar numa espada?” disse Lugh rondando Laho. “Afasta os pés, divide o peso por ambas as pernas senão cais.”
Assim que Lugh falou em cair, Laho desconcentrou-se, deixou o peso sobrepor-se-lhe e caiu para trás. Os olhos de Laho semicerraram-se e na sua cara podia-se ver pura frustração. A noite seria longa…