A beleza gera constrangimento, pensou Aschenbach, que se meteu a aprofundar este pensamento, buscando o porquê.
- Thomas Mann, Morte em Veneza
Mais um escritor alemão e mais um Nobel nesta casa, desta vez é Thomas Mann quem toma a minha atenção com uma das suas obras mais reconhecidas,
Morte em Veneza. Livro curto que se lê com gosto practicamente de uma vez e repleto de possÃveis interpretações e significados.
Gustav von Aschenbach, que tinha acabado de acrescentar o
von no seu quinquagésimo aniversário, sÃmbolo de nobreza, é um consagrado autor alemão classicista e formal, que vive na sua rotina organizada em Munique. Subitamente, após um passeio no parque e durante um encontro com um estranho homem ruivo sente uma incontrolável vontade de viajar. Parte primeiro para Pola mas onde imediatamente se apercebe do erro do seu destino e segue para Veneza, a cidade amada. Chega à cidade onde é conduzido por um gondoleiro que contra as suas ordens o leva directamente ao Hotel onde Aschenbach vai ficar hospedado. Apesar de contrariado e até um pouco temoroso pela figura, o ilustre alemão não se consegue deixar de sentir fascinado pela figura do homem que conduz a gondola, que mais tarde vem a descobrir ser o único homem sem licença para o fazer em Veneza. Instala-se então no hotel onde vê pela primeira vez a famÃlia polaca, duas irmãs que vestiam como se fossem freiras, e o jovem Tadzio que, aos olhos de Gustav, encarna o ideal da Beleza. Aschenbach fica imediatamente fascinado com o pequeno polaco e desde aà vai persegui-lo com o seu olhar admirador, mesmo quando a ameça de uma epidemia de cólera se abate sobre a cidade, até, literalmente, à morte.
Este é um romance múltiplo de interpretações, como já o disse. Talvez a maneira mais linear de o ler seja a sedução da intelectualidade pela beleza e a constante procura do artista pelo belo. Não está de todo errado, mas temo que seja uma interpretação demasiado simplista deste livro. Ou talvez seja a minha mania de esperar sempre mais do que aquilo que por vezes os livros nos dão. Mas atentemos em alguns pormenores, como os vários homens ruivos que causam em Aschenbach reacções sempre inesperadas. O primeiro lança-o num Ãmpeto de viajar; o segundo, o gondoleiro, dobra-lhe a vontade; o último, o músico, fá-lo apreciar a arte de uma maneira popular que o anterior escritor dificilmente conseguiria. Quem são estes três homens, todos ruivos, que perseguem o autor? É algo a que não sei responder mas que não consegui deixar de reparar durante a leitura. Há ainda o grito que Mann lança, o grito da liberdade de escolha sexual, ou não fosse no seu livro o autor apaixonar-se por um rapaz. É preciso ter em conta que em 1912 ainda a homossexualidade era considerada, pela maioria das pessoas, como um desvio à normalidade. Muitos se juntam na interpretação que Mann escrevia para exorcizar a sua própria homossexualidade retraÃda. O que não passam, é claro, de suposições. O que na verdade se sente neste livro é um despudor em relação a esta questão que na altura em que pela primeira vez foi publicado causou, certamente, incómodo. Mann apresenta esta história como se nada de anormal contivesse e não dedica nem uma linha a explicar o aparente engano que Aschebach tem. E foi uma boa decisão.
Mas mesmo com todas estas possÃveis interpretações, o que prevalece do romance é mesmo a ideia mais imediata, a tal busca constante da beleza pela arte. É quase um ensaio figurativo sobre isto mesmo: um artista é capaz de morrer pela beleza e sente-se pequeno quando se vê incapaz de reproduzir, como Aschebach no livro, e meramente enaltecer a perfeição. Esta é uma alegoria perfeita da constante busca pela perfeição e também do constante falhanço.
É com pena que, ao nÃvel da linguagem, não encontro nada digno de nota. Começo a aperceber-me que talvez seja uma caracterÃstica da literatura germânica, já o mesmo acontecia com os livros de Hesse. Ressalvo, é claro, as perdas naturais da tradução, mas julgo inconsciente da minha parte apenas culpar os tradutores. A verdade é que Portugal é um paÃs de poetas que procuram sempre o máximo da linguagem enquanto que a Alemanha é um paÃs de engenheiros que querem o trabalho feito com eficácia. Assim é a escrita de Mann, clara, concisa, detalhada. É também desprovida de beleza e experimentação mas não se pode pedir tudo. Já temos neste pequeno livro muito mais do que as páginas nos apresentam. É sem dúvida uma obra a recorrer por mais do que uma vez.
Escrito originalmente aqui.