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Autor Tópico: Um gato tem sete vidas e eu viverei menos sete anos  (Lida 3142 vezes)
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Maria Gabriela de Sá
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« em: Novembro 27, 2013, 02:52:23 »



          Eram tempos em que nem dávamos sequer pelas crises. Mas, lá que as devia haver isso é verdade. Contudo, não eram coisas que preocupassem os miúdos da minha idade. Isso tudo era para os mais velhos. Saber se havia em casa pão, batatas, arroz e feijão, eram assuntos de gente grande, dos pais e das mães dos muitos filhos que havia lá pela pacata aldeia, nessa altura muito povoada, nada fazendo prever que, com a taxa de natalidade tão elevada na altura, um dia tudo se iria inverter drasticamente. Há anos que não nasce lá uma criança, a escola fechou há mais de dois lustres e até de padres há escassez… O que faz lá os funerais e reza as missas tem de dividir o mal pelas aldeias, rateando aqui e ali e onde pode os seus serviços. Com os casamentos é que não tem ele muitas canseiras, assim como com os baptizados. A França teve muita culpa. Mais recentemente a Espanha também. E por aí adiante.

          Mas, não vou falar mais disso…

          Ora, por entre o que havia e não havia na minha pacata aldeia, também existiam animais, cavalos, éguas, mulas, machos e burros capazes de galgarem as encostas acima e abaixo, com os mais diversos carregos, que a vida era dura por lá. A povoação, com as casas, as pessoas, os sonhos e as esperanças de cada um ficava num fundinho, abrigada do vento e ladeada por vinhedos da região demarcada do Douro, a região vinícola mais antiga do mundo. Era preciso subir e descer muito para se viver por lá, no tempo que hoje assolou a minha memória. Por entre a enumeração já feita, esperança era o que havia menos. Tudo era uma eterna repetição. Os pais nasciam para a enxada, couves, hortas e vinha e os filhos tinham que lhe seguir as peugadas. A menos que tivessem nascido no seio de uma família rica. Ou, então, era preciso ser-se muito aventureiro e pegar numa trouxa de roupa ou numa mala de cartão para que alguém se atrevesse a assalariar-se numa grande cidade como Lisboa ou o Porto, quando no Porto ainda havia trabalho para toda a gente. A esperança tinha, então, quase só esses dois nomes. E ter nascido rico era o privilégio de apenas alguns.

          O resto era quase como no tempo do feudo, em que era preciso pagar ao senhor a renda da terra, com porcos, patos e perus, embora o meu avô materno, um dia e sem qualquer apoio da lei, tenha resolvido enfrentar o suserano, deixando as galinhas a comerem confortavelmente na capoeira os restos das couves que, felizmente, eram abundantes no tempo em que até a chuva era abundante.
 
          Depois, todos lhe seguiram os passos…

          De maneira que, sou neta de um, mais um menos, revolucionário. E, era da jeira dos homens e das mulheres que provinha o sustento da criançada, daí a pouco a continuar com os velhos costumes: sair da escola e ir fazer a monda ou fazer a escava, conforme se tivesse nascido rapariga ou rapaz.

          Isto tudo para dizer que, lá na minha pacata aldeia, não havia nem pobres, nem ricos,  nem remediados que não tivessem uma capoeira, fosse embora ela circunscrita a uma cerca de rede ou a campo aberto,  onde as galinhas catavam a erva e enchiam o papo para, a seguir e quando estivessem bem gordas, irem para a panela. Eram os mimos de um tempo de pouca abundância, sobretudo nos feriados e dias santos, em que era preciso comer com uma dignidade diferente da dignidade proveniente das batatas, dos feijões e da hortaliça do dia-a-dia.
 
          É costume dizer-se que a felicidade está onde cada um a põe… e a felicidade dos miúdos como eu não a púnhamos nós em lado nenhum porque ela estava em todo o lado. Ainda que por vezes houvesse dificuldades: o pai que se perde na taberna e chega a casa embriagado, os tabefes na mulher porque, nesse tempo, lá na minha aldeia, um homem casado sentia-se dono da esposa e dos filhos.  Sobretudo e quando a “nassa†passasse e o confronto do casal surgisse, era a chatice irreversível de se ter consumido o dinheiro todo pagar rodadas de copos aos amigos, além do mais com as contas da mercearia a aumentar.

         Meu Deus!,  onde é que eu já vou!...

         Voltemos aos animais, desta vez aos cães e gatos, porque as capoeiras lá estavam todos os anos, por alturas de Março, com as galinhas chocas, tendo,  sob a abada um cesto de ovos sempre em número ímpar. Os mais velhos diziam que o par dava azar à ninhada e que, quando não fosse cumprida a simbologia dos números, era sempre muito gorada. Vinte e um pintos, se o galo tivesse feito bem a ronda, seria uma criação soberba e o orgulho da dona, porque os pintos eram sempre da mulher. Já os porcos e os coelhos eram quase exclusivamente dos homens, ao menos no trato e na matança.

         Os cães e os gatos tinham normalmente o destino dos homens, mulheres e crianças. Uns eram ricos e viviam no aconchego de uma família que os presenteava com bons restos de carne e de peixe e os outros, os pobres, comiam o que lhes davam com amor, e havia ainda os pobrezinhos prolixos e vadios, alimentados pela caridade alheia, como ainda acontece hoje em dia, sobretudo com os cães abandonados pelo desamor.

         Ora, cães, gatos e crianças sempre fizeram uma combinação razoavelmente pacífica, a menos que houvesse um incidente qualquer que obrigasse uns e outros a mostrarem a sua verdadeira personalidade.

          Numa dada altura, lá pela minha pacata aldeia, aconteceu que os pintos de Março de algumas ninhadas começaram a desaparecer, sem deixar o mais pequeno rasto.
 
          O primeiro desaparecimento passou relativamente despercebido. Todavia, mesmo assim, o caso deu azo a pequenas especulações. Provavelmente, diziam as donas, os pintainhos ter-se-iam deslocado para longe das mães e caído num buraco qualquer, embora para os que vivessem numa capoeira vedada não pudesse aplicar-se essa desculpa, um bocado forçada pela ânsia de se encontrar justificação para o sumiço das pequenas criaturinhas, dada a relativa solidez do cárcere.

         Depois, quando os sumiços começaram a aumentar, as raposas tornaram-se nas principais suspeitas, não se pondo inclusive de parte a ideia de que os lobos também poderiam ter a sua quota-parte de responsabilidade. Mas, de conjectura em conjectura, quer uns quer outros, todos acabaram por ser ilibados. Afinal, para uma raposa esperta ou um lobo esfaimado, estar dentro de uma capoeira, abocanhar os pintos, que apenas tinham um nico de carne, e deixar as galinhas no poleiro era atribuir-lhes um enorme atestado de burrice que, de todo em todo, não lhes assentava bem. Além de que era Primavera e os montes, depois de o Inverno, transbordavam já de abundante comida.

         Daí que se tivesse de procurar o verdadeiro ladrão, que começava a assustar uma aldeia inteira, enquanto os galinheiros eram praticamente visitados todos os dias por um larápio desconhecido e sem nenhum respeito por infâncias tão desprotegidas.
Na caça ao homem, as crianças, onde eu me incluía, foram as mais empenhadas, ao ponto de um dia termos descoberto um gato amarelo em pleno assalto à capoeira da minha mãe.

          Finalmente, o gatuno tinha sido apanhado, tinha cor, tinha também um nome de família e, ainda por cima, tratava-se de um gatuno rico que, vivendo no seio da abastança, não precisaria de recolher à pilhagem e ao assassínio para sobreviver.

          A criançada ficou indignada com tamanha desfaçatez. Ao ponto de reunir uma espécie de tribunal para saber que destino dar ao homicida.

          Não foi preciso um grande julgamento para todos decidirem que o criminoso tinha de ser condenado à morte. Quem matava pintainhos não merecia nada menos do que isso. Matar aquelas criaturinhas, que os miúdos tanto gostavam de ver nascer, quando irrompiam com os biquitos pela casquinha do ovo para virem ao mundo, era de uma enorme barbárie. E só quem nunca teve a penugem fofinha de um pintainho recém-nascido na mão poderá não compreender como as crianças se podiam sentir gémeas de outros seres ainda mais pequeninos e ainda mais indefesos, lá naquele outro mundo animal e naquela outra infância tão diferente.

         Depois da sentença, o problema era como executar o malvado gato do Senhor Rodrigues, um ex-alfaiate que enriquecera, segundo se dizia, por ter descoberto um tesouro escondido na casa que entretanto comprara com o produto da agulha e da tesoura. Além do mais, colocar umas algemas na criatura era, antes de mais, a maior dificuldade.

         As ideias surgiram em catadupa na cabeça dos miúdos, já não sei se à revelia das donas dos pintos ou se com o seu conluio, ainda que velado. No fundo, no fundo, todos se queriam ver livres do malfeitor e, se a resolução do problema da mortandade tivesse de passar pelo desaparecimento do criminoso que fosse! Até pela inexistência, na altura, da pedagogia propalada pela reinserção social, a que todo o bandido tem direito. E, mesmo que se tivesse optado pela prisão perpétua, muito embora um gato tenha sempre sete vidas, depois daquela espécie de canibalismo praticado pelo agressor, mesmo os seus sete fôlegos nunca seriam suficientes para ele expiar tanta culpa.

        A estratégia, delineada quase em simultâneo com o sumário julgamento, passava por encarcerar o bicho num saco de serapilheira e linchá-lo, sem que ele pudesse ver os seus carrascos. Mas, mesmo assim, a dificuldade da captura era grande. Tudo teria de passar por uma trama bem urdida, que consistia em deixá-lo entrar na capoeira mais vulnerável e esperá-lo à saída, no mesmo buraco da rede por onde pudesse ter entrado.

        Assim foi. E logo na capoeira da minha mãe, a mais próxima do domicílio do pilha pintos.
 
        Contudo, os planos de execução foram alterados.
 
        Éramos uns sete ou oito miúdos, rapazes e raparigas, entre os seis e os dez anos e, em vez de prosseguirmos com a ideia do espancamento, com medo dos gritos do bicho e das respectivas arranhadelas, resolvemos levá-lo até ao pequeno ribeiro da aldeia e afogá-lo dentro do saco, numa pequena represa, perto do tanque onde as mulheres lavavam a roupa e as crianças, mais ao fundo, se divertiam e faziam justiça à com aquela execução bárbara.

         Não sei como me lembrei disto hoje e, acreditem, tendo pena da morte prematura e horrível dos pintos, não deixo de ter vergonha por tamanha crueldade infligida ao pobre gato. Donde, concluo que as crianças podem ser terrivelmente más e perversas.

         A seguir, entre a nossa condenação e os aplausos por termos livrado os galinheiros de um assassino, ficou no ar uma espécie de maldição para todos, alicerçada num velho ditado: ─ A quem matar um gato, a vida anda-lhe sete anos para trás...

         Portanto, eu que ajudei a tirar a vida a um gato que tinha sete, por mais anos que eu tenha, posso ter a certeza de que terei sempre menos sete anos. Porque eu ajudei a matar um gato amarelo numa pacata aldeia,  quando ela ainda não estava morta, como está, mais ou menos, hoje em dia.

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Dizem de mim que talvez valha a pena conhecer-me.
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« Responder #1 em: Dezembro 12, 2013, 18:36:54 »

Concordo com essa da crueldade das crianças. Podem mesmo! Nós é que nos queremos iludir e pensar que não!
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Goretidias

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Maria Gabriela de Sá
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« Responder #2 em: Dezembro 13, 2013, 00:53:53 »

É verdade, mas queira Deus que cada vez haja menos crianças cruéis...
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outono


« Responder #3 em: Dezembro 13, 2013, 21:53:48 »

Para além da aplicação da lei de talião por crianças que julgavam fazer justiça, o que fica é uma excelente narrativa sobre um crime mais preocupante, a morte das aldeias. Sinal de um progresso um pouco aleatório.

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Boa tarde
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Obrigado, Administração, por avisar!
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Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

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Boa noite feliz para todos
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Olá! Boas leituras e boas escritas!
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Boa noite a todos.
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Bom domingo para todos.
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Boa semana para todos.
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Boa tarde a todos.
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