Viagem à volta do teu corpo
Oh flâmulas douradas do teu corpo
ardendo no negrume do meu sexo.
Estrela gémea os cumes dos teus peitos
tecendo o ninho à sombra do meu braço.
Oh enxame de abelhas os teus dedos
fazendo o mel no vão das minhas pernas .
Oh mina de rubis a tua boca
refúgio do meu pássaro nocturno .
Auras do meio-dia à meia-noite
obscurecendo sóis na minha mente .
Sobressaltantes rasgos da memória
com buracos de queijo nos cabelos...
Oh coroa de espinhos
oh lÃngua de enforcado
oh rosa na montanha
oh estrela no cercado.
Oh lagarto na laje
oh aranha no canto
oh poço na fundura
oh tristeza
oh quebranto
oh cinzenta
oh escura .
Oh minha minha minha
sanguessuga desperta
nas veias sãs da loucura.
Oh cardo florescido
sombra de primavera
oh clarão acendido
na noite, Ã minha espera.
Oh boca silenciosa
pequenina e sequiosa .
Oh nenúfar no lago
ora aberto ora fechado.
Oh fenda na lareira
com grila... encantadeira.
Oh arroio intermitente
água da vida corrente.
Oh sombra deliciosa
onde o cheiro é mel e almÃscar
e o sabor é mel e rosa.
Oh pérola perdida
porque encontrada
nas breves dobras da noite
nas valvas da madrugada.
Oh feijão germinado,
na mesma hora colhido e semeado.
Oh palavra entredita e interdita
Oh tÃmida folhazinha,
rompendo ao cimo da terra
tremeluzinha...
Oh alfobre semeado
das loucuras mais secretas
delÃrio das febres puras
das feridas sempre abertas
das alucinações maduras.
Oh mapa-múndi da história
impacÃfico oceano
onde navegar é vão
naufragar é bom e glória
aportar simples humano.
Oh lago misterioso
encantado e povoado
com um só peixe de sombra
assombrado.
Oh vala comum da vida
onde a noite encontra o dia
e o dia é noite perdida.
Almofada de veludo
onde descanso a cabeça
dolorida,
no fim de tudo.
Taça de obscuro cristal
onde bebo o sangue-vinho
e como o pão principal.
Mesa posta para ceias
saturnais
onde a fome se alimenta
e cresce cada vez mais.
Fogo que tudo devora
e tudo cria
na mesma hora.
Esse teu corpo no centro
esse teu centro do corpo
centro da terra e do mundo
centro do meu pensamento
é
no fundo...
É uma praça pequena
de Hespanha
praça mourisca
luz sombra
luar absorto
vaga
sonâmbula mesquita
arcadas fontes pilares
poço de águas circulares
adagas dobras bainhas
silhuetas diluÃdas
por azinhagas,
sozinhas,
lâmina espada cristal
onde lampeja de noite
a minha luz natural.
Rosa de vidro irisado
eriçado quando inteiro
macio quando estilhaçado.
Oh minha noite de luz
oh minha estrela sombria
oh meu sol da meia-noite
oh minha lua de dia
riso da minha tristeza
choro da minha alegria
espuma de branca angústia
- oh minha praia vazia –
ruminada com volúpia
num quebra-mar de magia...
Dando meia volta ao mundo
no teu corpo ou no meu corpo
surge um planeta rotundo
à noite parece vivo
de dia parece morto.
É meu planeta secreto
é meu planeta perdido
encontrado e então aberto
desvendado e então proibido.
Planeta desabitado
salvo da minha esperança
oculto e inexplorado
entre os astros meu bocado
minha deixa
minha herança.
Planeta de fundos vales
crateras de sombra funda
onde reluzem tesouros
- urânios chumbos e ouros-
mudando a sombra em penumbra.
Planeta de grossos ares
vulcânicas emanações
sulfúreos fátuos luares
reflexos reverberações.
Praia de todos os mares
fervendo o primeiro dia
não já caos
mas ainda escombro de parto
negra alquimia
em que me espasmo
e me assombro.
Vibração das infra - cores
para lá do ultra espectro
céu de gozosos horrores
meu planeta,
meu projecto.
Planeta rubro que soa
tão alto que maravilha
nota só, que breve brilha
diapavibra e estilha.
Se o teu olhar me olhasse como um sol
eu
só de ser olhado
abrasaria.
Aqui e além
um incêndio de amor
da minha térrea crusta brotaria
-monologa, poeta, o meu planeta -.
Oh Ãgnea solidão
oh férrea estrela
oh preta escuridão.
Estou aqui oh meu mundo,
meu planeta
rima de U
vestido de plexiglass
chapa de aço
e cauchu
orbitando no clÃmax
como tu.
É em ti
meu planeta
meu recanto
que eu quero ser desterrado
por esse crime nefando
que é amar no outro lado.
Cantaremos sozinhos
sendo dois
a tua e a minha precisão de amor.
E o nosso canto
acordará mil sóis
em mil galáxias
como se fosse
sendo
um acto criador.
É que...
Há mundos por voar além dos céus
junto aos muros do fim acocorados.
Que luz se faça,
oh, sim,
esperam alvoroçados
asas viradas ao amanhecer.
E o amanhecer somos nós
eu no teu corpo pregado
ardendo em chamas louras
frente a ti
queimando no outro lado...
Geraldes de Carvalho
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