Djabal
Membro
Offline
Sexo:
Mensagens: 191 Convidados: 0
|
|
« em: Agosto 08, 2008, 17:14:56 » |
|
Existe coisa mais intragável que festa de criança? Não conheço. Estou numa delas. Escondi-me ficando num canto. A casa, parece, puxa uma conversa comigo; sentamos nós três, eu, ela e o tempo. Esse último se apresenta como um tecido com várias dobras. E estas não permitem uma leitura completa.
Saà da estrada para encontrá-la; situa-se numa clareira de um bosque, construÃda com muitos, harmoniosos e recortados detalhes em nogueira formando um brusco contraste com o branco da alvenaria. Com telhados altos, mansardas, terraços com balcões, num estilo alpino.
Entramos numa sala de estar ampla e alta, o forro e o piso com tábuas agora de mogno, natural e sonoro, as colunas que separam os ambientes estão adornadas com gravuras, mostrando cada uma um casal. Os pisos e as paredes estão forrados com tapetes, de lã, com motivos variados, geométricos, abstratos, nenhuma forma humana. A decoração ficou acolhedora, aconchegante, despertando em mim uma emoção, uma reminiscência, uma vontade de lembrar.
Aos poucos fui chamado pelo tempo para um outro lugar. Como um toque suave e amistoso no ombro. Talvez a lembrança da antiga história contada pela minha avó, contando que éramos descendentes dos nórdicos – soube depois que houve uma invasão sueca nas terras alemãs – que saqueavam de sobejo a região. “Mas não, não; não eram bandidos comuns, eram ‘bons ladrões’, roubavam para si o necessário e distribuÃam o excesso aos pobresâ€.
E dessa história estabeleci a conexão entre o lugar onde ela contava com este onde eu estava. Eram muito parecidos. Sim poderia ser isso. As madeiras como lembranças da floresta sempre lembrada por ela, que abrigou meus antepassados por muitos anos, a nogueira, o mogno e o bosque de pinheiros restaram como um sÃmbolo daquela era, que agora piscava sobre mim. Assim como a lã daqueles tapetes. Era o memento das ovelhas com sua pele de astracã atuando como coadjuvantes. Madeira e lã são lembranças de um tempo que não conheci, mas ficou em mim o mimo acolhedor de um lugar, escondido num canto que floresce agora com vigor e êxtase. Esse mesmo que precisava de reparos para torná-lo mais claro e luminoso. Foi dele que recebi a sensação de que pertencera ao rol dos meus sonhos também. Eu sabia de antemão quem o idealizou, conhecia a sua história e ela se entrelaçava com a minha.
Dentro da minha floresta e junto aos meus animais; soube então que havia sido um ovelheiro, guardando e cuidando para que não se perdessem ou fossem roubados; a prova ficou gravada como meu sobrenome. Estava já solidamente instalado na terra.
E fazia o que faço agora nas horas vagas, teço com o fio de lã o tapete com as imagens das minhas lembranças.
Detive-me para olhar as gravuras consegui ler: Macedônia, Bósnia-Herzegovina, Sérvia, Croácia, Montenegro, Eslovênia. A descrição escrita no alfabeto latino indicava que provieram da Bósnia ou da Croácia, já que as demais regiões escreviam em cirÃlico. Casais em trajes tÃpicos de cada paÃs posando antes do inÃcio da dança.
Segui para a sala de refeições e encontrei como elemento decorativo duas gravatas com nós duplos presas à parede, com motivos quadriculados da mesma cor, em tons diferentes, e a minha dúvida se desfez. Estava numa casa de croatas.
Ao mesmo tempo ouvi uma conversa contando que o pai do dono da casa era iugoslavo. E assim o meu fio encontrou a sua agulha. E alguém de pais croatas, nascido na Bósnia, apareceu para contar uma história que também foi minha: Ivo Andric.
Ano Intranqüilo é o nome dela e narra a saga do patrão Ievrem que viveu numa cidade provincial da Bósnia, num tempo impreciso. Próspero agiota que dominava o comércio local, com poucas palavras, muitas informações, dinheiro e inteligência. Perdeu o movimento de metade de seu corpo e do andar superior de sua casa comandava seus múltiplos interesses, sentado sobre seu tapete. Entre os serviçais encontrou Gága. Uma ciganinha deixada para trás num êxodo provocado pela fome; recolhida, cuidada e treinada por sua mulher e por sua filha.
Encontrou nela a beleza. Desconhecida para ele até então. Passou a observar a mudança das cores da natureza, saber o nome dos pássaros, plantas e flores. Sabia que tudo se move e esvoaça para longe. Sabia também que tudo era passageiro. E apesar disso tudo, nutriu esperanças - jamais ditas - de retê-la consigo.
Esperanças desfeitas pela requisição do exército imperial, na pessoa do bei, de sua Gága para casamento. Pedido irrecusável, irreversÃvel e imediato. Atrasou o quanto pode, o quanto permitia a sua reputação. Havia aprendido a lição na teoria e na prática; a entregou.
Esclareço: isso tudo se passou comigo, entretanto sem o ingrediente da sabedoria. Não entreguei a minha Gága, tentei prendê-la, sem perguntar da sua vontade. E ela fugiu. Aprendi sem a reflexão, com a experiência; e é esse o signo dos tempos atuais?
Restam pontos a esclarecer nessas dobras do tempo. Quanto mais fino o tecido mais ilegÃvel a dobra. Saio da festa, vou a um barbeiro. Entrei no primeiro que encontro. Encontrei Pedro das Alagoas. Pergunto se é de Palmeira, lembrando de Graciliano, diz-me ser natural de Pão de Açúcar. Pergunto se tem notÃcias de Corisco. “Tenho†– diz – “mataram o filho dele a mando do Cel. Mariaâ€. “Coisa de mulherâ€. Depois de tanto tempo, parece que nada mudou. Parece. Olho ao meu redor, um cafarnaum de objetos, dentre os quais uma fotografia com casal idoso sentado num banco, olhando os que passam. Reconheci a Aquitânia pelas suas torres oitavadas e pela flâmula com seu leão rompante. Perguntei de onde veio. “Ah! Um rapaz de Piracicaba passou vendendo. Bonito, né?â€
|