- Tenho saudades da minha mulher.
Uma das raparigas, que não falara ainda, sorriu-lhe com simpatia e isso encorajou-o a continuar:
- Tenho saudades da minha mulher e não sou capaz de o dizer a ela nem a mais ninguém a não ser a você.
- António Lobo Antunes, Memória de elefante
Memória de elefante é o primeiro romance publicado de António Lobo Antunes, em 1979, e deve ser lido como tal, como o primeiro, como um indicador do génio fervilhante que está por vir. Ou, talvez, deva ser lido precisamente ao contrário, como uma obra singular, experimentalista, difÃcil e, ao mesmo tempo, fácil de identificar com tanta coisa.
Este livro, com um forte traço auto-biográfico, conta alguns dias na pele de um psiquiatra, separado da mulher e das filhas, que se resignou a baixar os braços e parar de tentar encontrar um sentido para a sua vida fortemente marcada pela presença na Guerra Colonial. É, portanto, um dia-a-dia quase mecânico de uma máquina enferrujada pelas memórias ultra-marinas.
A propósito das memórias de guerra, junto mais um excerto que espanta pela violência feroz da realidade e mostra bem o cariz marcante que teve na vida do personagem, sempre tratado ao longo do livro como “o médico†ou “o psiquiatraâ€:
Tu doente em Luanda, a miúda longe de ambos, e o soldado que se suicidou em Mangando, deitou-se na camarata, encostou a arma ao queixo, disse Boa noite e havia pedaços de dentes e de osso cravados no zinco do tecto, manchas de sangue, carne, cartilagens, a metade inferior da cara transformada num buraco horrÃvel, agonizou quatro horas em sobressaltos de rã, estendido na marquesa da enfermaria, o cabo segurava o petromax que lançava nas paredes grandes sombras confusas.
- António Lobo Antunes, Memória de elefante
Mas mais do que pela memória das atrocidades que presenciou, o médico vive perdido com a perda da sua famÃlia. Chega ao ponto de se esconder à porta do colégio das filhas para as poder ver à saÃda, tal vai a saudade e o desespero do personagem.
O livro é quase sempre narrado na terceira pessoa, apesar de num tom de voz tão Ãntimo que por vezes chega a parecer uma voz interior ao próprio médico que para si vai relatando a triste vida que a que se vê preso. Quer fugir da rotina mas, como um
boomerang volta e chora a vida que um dia foi sua e agora lhe falta.
Lobo Antunes refere-se a este livro como uma obra inicial com os seus encantos de inexperiência mas parece rejeitar o seu conteúdo como um trabalho inferior. Eu, tal como muitos dos seus leitores, discordo em absoluto dessa qualificação. Como escrevi na introdução, não deve ser vista como uma primeira obra, talvez nem sequer se devesse pensar em
Memória de elefante como um livro de António Lobo Antunes. Porquê? Porque nele se retratam emoções tão comuns, e, ao mesmo tempo, tão tristes que este livro poderia ser escrito por qualquer português - povo profundamente triste, por natureza. Não sendo uma história de espantar pela sua surpreendente trama, é exactamente aquilo que Lobo Antunes quer: um espelho da vida, páginas em que o leitor pensa “Isto é exactamente aquilo que um dia penseiâ€, “Senti-me tal e qual como ele aquiâ€.
Os momentos de desespero são muitos, tal como os de falta de vontade de viver. O psiquiatra senta-se a ouvir os seus pacientes para perceber, minutos mais tarde, que não ouviu uma única palavra que foi dita, tanto pelo doente como pela sua boca que automaticamente respondia.
Os momentos de tristeza são profundamente tocantes, como o monólogo no interior do carro - a única altura em que o narrador muda para a primeira pessoa - um baixar de braços e a tomada de consciência da perda da mulher amada.
Memória de elefante não será a obra-prima de Lobo Antunes, mas mesmo assim podemos encontrar pequenos momentos de génio, tal como o excerto acima, pormenores deliciosos de linguagem: “Dão-te tesão ò malacueco?†um delicioso manjar que mistura prosa quase poética com a franqueza rude de um “Foda-se†bem sonoro.
Talvez Memoria de elefante não seja um livro da obra do autor, talvez seja um livro da vida, quiçá de muitas vidas pertencentes a muitos mais.
Escrito originalmente aqui.