gdec2001
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« em: Janeiro 19, 2014, 16:32:35 » |
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Na vida. A vida é a minha religião. Mas como? Não sei. Ou melhor, sei mas não sei explicar bem. Creio que o homem só pode viver em sociedade se procurar não fazer aos outros aquilo que não quer que os outros lhe façam. E esta é a regra moral de que derivam todas as outras. Do que diz, parece que se deve concluir que todas as pessoas religiosas são estúpidas. E nós sabemos que isso não é verdade. É claro; mas há muitas razões para que um homem inteligente possa ser religioso ou parecê-lo. A inteligência é a possibilidade de raciocinar bem dentro de certos parâmetros: Se os parâmetros são estreitos é relativamente fácil raciocinar bem mas se os parâmetros são largos, já se torna difícil. Ora isso, de religião e de tudo em que acreditamos ou não, entra em parâmetros bastante largos que são, ao fim e ao cabo, os da filosofia. De maneira que podemos perfeitamente, encontrar um homem bastante inteligente acreditando em coisa absurdas. E o que é difícil não é acreditar mas deixar de acreditar, principalmente nas coisas em que acreditávamos quando éramos pequenos. Eu tive a sorte - aquilo que eu considero a sorte - de nunca ter acreditado em nenhuma religião. Se a Adélia começa a falar em filosofia, então é que eu não entendo nada. Ora, ora. A filosofia é para toda a gente e toda a gente tem a sua, saiba ou não saiba o significado da palavra. A Olívia tinha também o costume de dizer que não tinha nada que fazer. A Adélia, enquanto costurava, repreendia-a brandamente: Não deve dizer que não tem nada que fazer, pois tem a sua filhinha para criar e educar. Mas eu tenho uma governanta, que é muito boa e a pequena tem a sua escolinha. Nada, nem ninguém, pode substituir uma mãe quando temos a felicidade de tê-la. A não ser que a Olívia queira que a sua filha ame a governanta como deve amá-la a si. Oh, não, evidentemente. Então vê. E diga-me: Não gosta de fazer roupinhas para a sua filha? Tenho a impressão de que gostaria, se soubesse. A Adélia costura tão bem. Não, não costuro lá muito bem. Costuro é com amor; com o amor que devemos por em...quase todas as coisas que fazemos. E, se quiser, posso ensiná-la. Mas a Olívia não tinha paciência. Cansava-se com facilidade. Queria era arrastar a Adélia para a rua, para as compras. A Adélia tinha muito que fazer e normalmente furtava-se. Um dia em que acompanhou a Olívia, esta queria comprar para as duas. A Adélia reagiu: Não, não; embora eu seja pobre também tenho o meu orgulho, disse rindo-se para atenuar a dureza da expressão. Ora, ora; se a Adélia fosse pobre de verdade, não tinha orgulho, respondeu a Olívia, rindo-se também, pela mesma razão. Tira-me é o gosto de fazer a única coisa que posso e gosto e nem tem muita importância : Dar. A Adélia acabou, então, por aceitar um brinquedo para o José. Ficou a ter maior respeito pela Olívia - todas as pessoas, meditava, têm as suas coisas boas - mas evitava acompanhá-la nas compras e fazia sempre resistência em aceitar qualquer presente. Numa das vezes, comprou também um brinquedo para a Elsa que as acompanhava. É uma chatice, pensava. Como tenho pouco dinheiro dou-lhe sempre maior importância do que a que ele merece. Mas não há nada a fazer. Igualmente difícil foi, a relação que se estabeleceu entre o Mário e o industrial, pai da Elsa. Ele é filho de um vendedor de sapatos, nas feiras, que se tornou industrial de calçado, cerca de nove anos antes de morrer subitamente, de uma daquelas doenças do coração que tanto matam os portugueses. A fábrica é lá no Norte, perto do Porto, de onde ele é natural. Estudou na escola comercial e, quando o pai morreu, ainda ele não tinha o curso completo. O seu irmão Afonso, mais velho do que ele sete anos, já então trabalhava na fábrica e ficou a dirigi-la. Quando ele acabou o curso o irmão chamou-o para a fábrica, mas as coisas nunca caminharam lá muito bem, porque o irmão tratava-o sempre como um menino. Com carinho mas sem respeito algum. Conseguiu convencê-lo a separarem-se. O irmão ficou com a fábrica e ele com um grande armazém, que o pai comprara em Mem Martins, e com bastante dinheiro. O irmão disse-lhe: Cá te espero, dentro de poucos anos. Veio, então, viver para Mem Martins. Montou a sua fábrica - de calçado, é claro - no armazém. Trabalhou muito e as coisas correram-lhe ora pior ora melhor e depois cada vez melhor, ainda que lhe tivesse custado, bem mais do que julgava, a vencer. Comprou depois, uma velha fábrica de curtumes que estava quase parada e modernizou-a. Montou finalmente uma grande loja de venda de calçado. Assim domina todo o processo do fabrico e comércio dos sapatos... em Mem Martins, costuma ele dizer. E conquistou o respeito do irmão. Colaboram muito no fabrico e, principalmente, na exportação de calçado. Cada um deles especializou-se no fabrico de certos tipos de calçado e quando algum deles apanha um cliente nunca mais o largam. Na verdade funcionam, em relação ao estrangeiro, como se fossem apenas uma grande fábrica capaz de satisfazer todas as exigências que lhes façam, por mais caprichosas que pareçam. Sim, casou-se bastante tarde e já conhecia a Olívia desde muito pequena, porque é irmã da mulher do Afonso. Assim as duas famílias ficaram ainda mais unidas. Ela é boa rapariga ainda que, às vezes, faça umas doideiras danadas. Quando nasceu a Elsa, ele já tinha quase quarenta anos. Calcule a minha aflição, quando ela desapareceu, disse. Ultimamente arranjaram uma casa em Lisboa por vontade da Olívia, mas é claro que ele está quase sempre na fábrica de calçado, concluiu. Ele entende que o Mário está a esbanjar faculdades e oportunidades, empregando-se como motorista. Sem qualquer favor lhe daria, ele, um muito melhor lugar, numa das suas empresas. O Mário rindo-se, respondeu que se o Caetano Duarte quisesse, ele podia meter uma cunha para ver se lhe arranjava um lugar como motorista, embora não pudesse garantir que o conseguisse. Na música entendem-se um pouco melhor: Ambos gostam muito da música lenta, dos meados do século XX e detestam a ópera, embora o Duarte vá ao S. Carlos, duas vezes por ano, “para a Olívia mostrar as peles”, diz, rindo-se. Gostam também, ambos, do fado, embora raramente dos mesmos fados. Mas acaba aí o seu entendimento em matéria de música. O Duarte não gosta de música sinfónica e detesta o Jazz, que lhe parece um conjunto de ruídos, sem qualquer sentido. Rock nem vê-lo, quanto mais ouvi-lo. Adora, verdadeiramente, o futebol e excede-se, com facilidade, na defesa do seu clube, o Porto, pois é natural de Avintes, ali, perto de Vila Nova de Gaia. E entusiasma-se com os bons resultados que os portugueses conseguem obter nas corridas pedestres internacionais. Ao Mário também lhe agrada ver jogar futebol e ver correr os bons corredores mas apenas na televisão. Ah! No que se entendem perfeitamente, é que ambos gostam muito da Elsa e o Duarte começou também a dedicar-se ao José porque o miúdo é, na verdade, extremamente encantador. Enfim dão-se bem, porque se respeitam, embora sejam muito diferentes. Mas será difícil que estabeleçam uma relação que vá além da cordialidade. Porém, já se viram acontecer coisas mais difíceis, não é verdade ? E pronto. Já está contada a primeira parte da história.
Geraldes de Carvalho
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