josé antonio
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escrever é um acto de partilha
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« em: Agosto 29, 2008, 14:13:48 » |
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Recordo-me da dificuldade em adormecer, preocupado com aquele fenómeno que nunca entendera: - Como haviam conseguido meter tantos músicos e instrumentos dentro daquela caixa de madeira com eles a tocarem? Pior ainda quando escutava nas noites de serão com o meu pai os relatos de hóquei em patins, deitava-me aterrorizado com a situação dos jogadores e assistência ali toda metida!. Na escola nenhum dos meus colegas tinha explicação, limitando-se a encolher os ombros com o mesmo Ãndice de ignorância que eu. O tormento ganhou tal dimensão que comecei a evitar ouvir a telefonia para não padecer durante a noite com a insónia e pesadelos. Apenas o Sr. Antunes, farmacêutico, teve a coragem de me aturar a curiosidade numa tarde em que estava sem clientes. Pegou no cordel do pião que eu transportava na altura, para treinar com a selecção da minha rua, esticou-o em cima do balcão, entre uma caixa grande e uma mais pequena e explicou: - A caixa pequena é a telefonia e a grande é o sÃtio aonde as coisas acontecem. Então, tudo o que se passa na caixa grande vem através do fio ( cordel do pião...) até chegar à caixa pequena que está em nossa casa, que é telefonia! Perante o meu olhar esbugalhado e assustado, continuou para me acalmar: - Bom, o som antes de entrar na caixa pequena anda pelo ar à s voltas, à s voltas até ficar pequenino como o bico do teu pião e só depois é que entra na caixa pequena. Entendeste? Nada tendo percebido só me restou acenar afirmativamente com a cabeça, orgulhoso quanto bastasse para ser sincero com o Sr. Antunes, depois daquela explicação que só me complicou as ideias, pois agora tinha para além da caixa da telefonia que imaginar toda aquela gente a passar por dentro do cordel do pião, entre as duas caixas. Impotente para descobrir fosse o que fosse, limitei-me durante uns tempos a dedicar-me sómente à escola e aos trabalhos de casa, antes que os mesmos falhassem e degenerassem em alguma medida anti-democrática em casa. Foi então que num dos serões habituais do meu pai deparei com ele virado à s pancadas na telefonia, num ritmo crescente de ritmo e violência acompanhadas de quando em vez de um vocabulário há muito por ele próprio a mim proÃbido. Antes de soar a ordem para deitar, recebi instrucções para entregar a telefonia na manhã seguinte na casa do Sr. Silva, conceituado técnico daquelas e doutras máquinas. Logo de manhã e porque o Sr. Silva ficava no caminho da escola, peguei na caixa de cartão muito bem amarrada que o meu pai deixara pronta na véspera e fiz-me ao caminho. O Sr. Silva tinha a garagem cheia de telefonias por tudo quanto era sÃtio, nas prateleiras, no chão, no corredor de passagem para a casa, dando a entender que todas tinham adoecido e estavam ali como as pessoas no hospital a aguardar pela sua vez. Quando cheguei tinha uma telefonia em cima da banca toda aberta e não resisti a colocar-lhe o meu problema. Ele, com a paciência que os sessenta anos lhe conferia, explicou-me como só um técnico seria capaz. - O som não se vê, é como o ar que nós respiramos e não vemos.Então é assim, o som tal como o ar anda por aà à nossa volta e tem muitas vozes. A tua, a minha e a de todos os outros. Mas só nos ouvimos se estivermos perto, não é? Tu ouves o teu professor porque ele está na sala à vossa beira, se ele estivesse em casa dele, vocês não o ouviam! ( Até ali tudo entendido...) - Então as telefonias têm estes ouvidos, ( apontando para uma espécie de frascos de óleo de fÃgado de bacalhau em miniatura...) que apanham todas as vozes que andam no ar, como se fosse um Ãman! ( por acaso eu também sabia o que era um Ãman por ver o meu pai utilizar para apanhar os pregos no chão... ) e depois, ( apontando para o altifalante ( que eu já havia visto na mão de um feirante... ) fala por este funil para nós ouvirmos! É o som que nós ouvimos. Uma só voz e não todas as que andam á nossa volta. Estava explicado o fenómeno. Pouco tempo mais tarde aprendi que os ouvidos referidos pelo Sr. Silva eram as válvulas e a boca misteriosa que nos atirava o som era de facto um altifalante idêntico ao que eu vira na mão do feirante para chamar a atenção de todos os presentes.
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