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Autor Tópico: O Caminho (14)  (Lida 1472 vezes)
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NunoMiguelLopes
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Não vou gostar nada do dia de hoje, pois não?


« em: Outubro 09, 2009, 11:06:36 »

O ferimento infectado e em carne viva que Pace e Bliss viam na palma da mão esquerda de Worms era como uma pequena boca cheia de dentes afiados que mordia as suas próprias bordas num contínuo mastigar ruidoso. Parecia um hediondo sorriso torto aberto ao longo de todo o comprimento da palma entre a linha da vida e a linha do destino e o espaço entre as duas abria e fechava, deixando escapar um fio de sangue e outro de pus amarelo pelos cantos. O cheiro era horrível e Pace teve de subir o lenço vermelho do pescoço para o rosto pois de cada vez que os pequeninos dentes entreabriam um fedor fétido a carniça escapulia-se como se o monstrinho que vivia na palma da mão de Worms tivesse acabado de arrotar. Apesar da repulsa que sentia, Bliss inclinou o rosto para melhor ver aquele espectáculo grotesco. Além da ferida-boca maior, outras aberturas de menores dimensões nasciam na linha do coração e na linha da saúde, e até nos dedos. O dedo anelar terminava numa dupla fileira de dentes logo abaixo da extremidade da unha. Toda a mão descoberta, despertando com a luz e o ar do quarto, mordiscava em si mesma como se fosse um dos pequenos-almoços servidos no restaurante do Motel da Escuridão.

- Coisinha horrorosa – disse Bliss. Olhou por cima do ombro para o companheiro. – Pace, já tinhas visto uma coisa ass…

Assim que Bliss desviara os olhos da palma esquerda de Worms, a ferida maior abriu aquilo que à falta de melhor vocábulo se poderia dizer que seriam os seus lábios ensanguentados e os dentes retorcidos e afiados saltaram na direcção do rosto dela escorados num maxilar retráctil que ainda tinha um alcance razoável. Teria abocanhado a bochecha direita da mulher ornamentada se esta, alertada pelo súbito lampejo dos olhos luminosos de Pace ao ver aquilo não adivinhasse por si o perigo que corria. Bliss teve tempo de atirar a cabeça para trás, todo o seu corpo, na verdade, e os dentes fecharam-se com um som terrível de mandíbulas a morder o vazio, a menos de um dedo da cara dela. Bliss, com o susto e o impulso que deram ao corpo para se esquivar da ameaça, perdeu momentaneamente a capacidade de pairar e caiu sobre a carpete com grande parte do seu corpo a entrar em contacto com a armação de metal na base da cama. O ferro enferrujado começou imediatamente a derreter perante o toque da mulher e gotas grossas de metal derretido pingaram sobre a colcha esfarrapada, abrindo novas crateras no tecido esbofado.

Ao mesmo tempo que Bliss reagia ao perigo, Worms fazia o mesmo. Quando sentiu a mandíbula da ferida maior entesar-se como uma mola para atacar, reconhecendo a familiaridade dos sintomas, ainda foi a tempo de afastar a mão e isso, mais do que a reacção instintiva do alvo apetecível daqueles dentes terá sido a salvação de Bliss. Worms já vira aquelas mandíbulas estenderem o seu raio de acção a quase dois palmos e era esse o comprimento que exibiam agora, crescendo da palma da mão dele como um pescoço que no fim só tinha dentes vorazes, tentando desesperadamente esticar-se para além do seu limite. Dentes que tinham olhos agora num desvairado estado de excitação provocado pela visão de tanta carne exposta no corpo nu de Bliss.

Pace também reagiu, esticando a mão para o colt que estava deixado na mesa-de-cabeceira do seu lado da cama e, alcançando-o, apontou-o meio ao apêndice insaciável meio à múmia.

- Guarde lá isso, Worms – disse ele, com tanta firmeza quanto temor na voz, - ou rebento-lhe com a mão.

Worms ergueu a mão direita, a que permanecia enfaixada, num gesto de súplica, e recuou visivelmente amedrontado, arrastando à sua frente os metros de ligadura que desenrolara da mão esquerda, indo bater com as costas na parede que tinha atrás de si. Bliss conseguiu recuperar a compostura e levantou-se, indo colocar-se às costas de Pace que continuava a apontar o revólver ao outro. O membro dentuço ainda mordia o ar como se tivesse, apesar da distância ter agora quadruplicado, alguma possibilidade de morder algo mais do que apenas isso. Tornava-se evidente que a não seria a inteligência a animá-lo, mas sim um instinto mais selvático, primordialmente mortífero, que se recusava a retroceder para dentro da mão do seu hospedeiro involuntário.

- Preciso de qualquer coisa para o tapar – conseguiu dizer Worms. Apontou, a uma distância segura da boca de ponta e mola, o indicador direito à almofada que estava atrás de Pace. – A fronha. Preciso da fronha.

Pace levantou-se e libertou o recheio de esponja apodrecida da almofada da sua fronha mofada de onde traças compridas e multipédicas se escaparam para a segurança temporária dos folhos da colcha e, segurando a bolsa de tecido pela mão a todo o comprimento do braço esquerdo esticado à sua frente, levou-a até Worms. A mandíbula frenética pareceu tê-lo “visto†aproximar-se e intensificou os estalos dos dentes cravando-se no ar como uma trituradora convulsiva. Worms esticou a mão direita.

- Não se chegue mais perto – avisou, muito perto do pânico. – Jogue-me isso.

Pace assim fez, e lançou a fronha a Worms. Os dentes ignoraram completamente quando o pano de seda falida lhe passou voando por cima, centrando toda a sua atenção bravia em Pace, em especial nos pontos do seu rosto onde a carne ainda se sobrepunha aos componentes mecânicos. Worms agarrou na fronha e muito cautelosamente, e apesar do medo que lhe fazia vacilar a mão direita, cobriu a mandíbula como faria um habilidoso caçador de cascavéis a ensacar mais uma presa. O estalar dos dentes deixou imediatamente de se ouvir e o volume debaixo do tecido perdeu parte da sua extensão. O monstro regressava ao seu ninho na palma da mão de Worms. Este, já mais calmo, apontou o único olho que espreitava do novelo de ligadura suja de sangue a Bliss.

- Peço que me desculpe – disse ele, apertando justo o embrulho da fronha à volta da mão esquerda. – Mas assim fica a saber que o seu toque não é o único que tem potencial para a morte. Sei o que isso é.

- Foi assim que perdeu o seu outro olho? – Pace guardou a pistola no coldre que trazia à anca direita. – Foi essa coisa? Comeu-lhe o olho?

Debaixo dos seus trapos imundos Worms sorriu. Se os outros tivessem podido ver, teriam ficado sensibilizados com a tristeza daquele sorriso e ao mesmo tempo horrorizados com a quantidade de dentes esfomeados que ele escondia.
« Última modificação: Dezembro 16, 2009, 13:36:12 por NunoMiguelLopes » Registado
Goreti Dias
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« Responder #1 em: Outubro 09, 2009, 19:52:48 »

Tantos dentes assustam! Gostava de saber onde vais arranjar semelhante inspiração. É obra!
Beijo
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Goretidias

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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
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Sejam bem vindos às escritas!
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Boa tarde!
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Bom Ano! Obrigada pela companhia!
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Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
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Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
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Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
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Brevemente, novidades por aqui!
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Boa tarde
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Obrigado, Administração, por avisar!
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Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

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Olá! Boas leituras e boas escritas!
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